Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, agosto 29, 2007

Dora Kramer - O vigor dos fatos

Dora Kramer - O vigor dos fatos
O Estado de S. Paulo
29/8/2007
Surpreendente na veemência dos termos e implacável na objetividade do retrato traçado a respeito do esquema montado pelo PT para construir suporte financeiro a seu projeto político de longevidade no poder, o Supremo Tribunal Federal fez nos últimos dias bem mais que meramente aceitar uma denúncia para abertura de um processo criminal de tramitação longa, intrincada e com resultado imprevisível.

O STF, de forma quase sempre unânime, deu um aviso geral aos navegantes da vida política e adjacências - aí incluídos os que se põem como satélites do poder para realizar seus negócios - para que andem devagar com os respectivos andores porque os santos não precisam ser de barro para se quebrar.

Podem ser poderosos, podem fazer parte de um governo popular, podem contar com o beneplácito da desinformação (na melhor das hipóteses) do eleitor, podem pagar fortunas a medalhões da advocacia, podem ter base social, podem ter abrigo na intelectualidade, podem contar com a leniência corporativista de seus pares no Parlamento, podem agir sob o guarda-chuva de uma figura presidencial de conteúdo simbólico singular, podem tudo.

Só não podem mais esperar que a Corte Suprema ignore a realidade, privilegiando as tecnicalidades jurídicas em detrimento da lógica e da clareza dos fatos.

Incorrerá em grave equívoco quem ainda considerar, para efeito de cinismo supostamente engajado, que, no fim, o processo acabará “dando em nada”. Tal hipótese é impossível, pois, a partir do recebimento integral da denúncia no tocante ao número de acusados, já se produziram resultados robustos.

Ficou patente que no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio da Silva práticas passíveis de enquadramento criminal foram adotadas no intuito de financiar um projeto de construção de hegemonia política de um grupo partidário que associou sua ideologia aos piores instrumentos e operadores do Estado, visto como patrimônio à disposição dos ocupantes do poder.

Ficou patente que não se tratou de mera compra de votos no Parlamento. Para aprovar seus projetos, o governo contou - e ainda conta, como ficará demonstrado na votação da CPMF - com a oposição.

O mensalão propriamente dito emprestou nome ao episódio, mas tem peso menos relevante naquilo que o ministro Marco Aurélio Mello chamou ontem de “esse grande todo”.

E qual é o “todo”? O projeto petista de se tornar preponderante - e assim figurar irremovível por meio do voto - na sociedade, nas estruturas de comando, tais como prefeituras, governos de Estado, Presidência da República e, é claro, no Parlamento.

Tal projeto precisava de dinheiro de um lado e sustentação partidária de outro. O PT perdeu-se na convicção de que fazia só política e aos outros usava como muitos já haviam feito. Aliou-se com total falta de cerimônia a notórios bandidos sem perceber que, na companhia deles, chafurdava na mesma lama.

Achou que podia usá-los mediante a manipulação de seus interesses e ambições, saindo-se ileso por ser sócio ideológico no processo. Parte de seus integrantes terão de ser ver agora com a lei e os demais precisarão refletir sobre as vantagens da autocrítica. Se tivessem feito antes, estariam a cavaleiro para recomeçar sem a companhia do desconfortável passivo.

Para a Justiça, se acreditou possível pôr em prática o plano de hegemonia, interditado pelo conjunto dos juízes do STF, que passaram também a mensagem de que nomeações por parte do presidente da República não garantem ao governo a submissão do Judiciário, que se mostrou como o grande fiador da dignidade nacional.

Pelo exposto durante os cinco dias de julgamento, em que pessoas acostumadas a serem chamadas de excelência foram tratadas sem a menor reverência, chamadas de “bando”, “quadrilha”, “vulgo”, referidas como autoras de tramas sórdidas e “acordos criminosos”, o tribunal traçou uma risca de giz entre o antes e o depois da abertura de processo criminal contra os 40 acusados pelo procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza.

A decisão do Supremo prestou uma homenagem ao discernimento de todos aqueles que, perplexos, assistem à escalada de impunidade e cinismo, muitas vezes duvidando do que seus olhos vêem e seus ouvidos escutam, cogitando da hipótese de dar razão aos que atribuem a enxurrada de malfeitorias à aludida conspiração das elites em conluio com a má vontade da imprensa.

Seja qual for o desfecho do processo, pelo menos na primeira fase, os fatos se impuseram pelo seu vigor. O STF mostrou disposição de punir, com a exposição decorrente da ação penal, e não de absolver por antecipação, quem se apresente como protagonista de episódios tão bem demonstrados - faltando serem substancialmente provados - na denúncia do procurador, nos votos do relator Joaquim Barbosa e no relatório da CPI dos Correios, base do trabalho de ambos.

Nada foi, portanto, em vão. Principalmente se o ato do Supremo for entendido como um marco de recomeço sob parâmetros mais adequados à saúde do progresso institucional.

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