Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 26, 2007

FERREIRA GULLAR

Estamos nas mãos deles


Você tem plano de saúde, mas, nas mãos deles, sabe que morre na fila do SUS se adoecer

ESTAMOS NAS mãos deles. Se você mora no subúrbio e anda de ônibus, está nas mãos deles. Há o ônibus mais barato e o outro, com ar refrigerado, mais caro. O mais barato não vem nunca e você é obrigado a tomar o mais caro, com ar refrigerado, mesmo no inverno. O transporte urbano é uma concessão e a empresa que explora essa concessão tem obrigações que ela não cumpre e as autoridades fazem que não vêem. Estamos nas mãos deles.
Se você é idoso, está nas mãos deles. Já que existe uma lei que obriga, por exemplo, os supermercados a reservarem um caixa exclusivamente para os idosos, o gerente busca um modo de burlar a lei. É que ele quer subir na empresa e, para isso, vende a alma ao diabo. Fila exclusiva para idoso é mais um caixa, mais despesa. Então, num supermercado aqui de Copacabana, o gerente bolou uma saída: pôs uma placa dizendo que o idoso tem preferência em todos os caixas, ou seja, não tem em nenhum. Claro, qual é o idoso que tem coragem de passar na frente de 20 pessoas numa fila? A caixa especial para o idoso é lei, mas o supermercado não cumpre e fica por isso mesmo.
É uma das razões por que digo: estamos todos nas mãos deles. Por exemplo, você paga um plano de saúde, que raramente usa, mas, como está nas mãos deles, sabe que, se um dia adoecer, morre na fila do SUS. Mas eis que, em determinado mês, o boleto de cobrança não vem e você, às voltas com mil problemas, não reparou. Aí então recebe um aviso de que está em débito e terá que pagar com multa sob pena de perder o plano de saúde. Pode? Eles não mandam o boleto de cobrança e quem paga a multa é você! É que estamos nas mãos deles, cara!
Você assina televisão a cabo, paga por isso. No começo, a televisão a cabo não tinha anúncio, já que é paga por você, mas agora todas elas exibem publicidade. Você paga para ver propaganda? Não há nada a fazer, senão romper o contrato e deixar de assistir ao seu seriado predileto. Por isso, você não rompe e, contrariado, passa horas a ver publicidade que não deseja ver. Está nas mãos deles.
Outro dia, um amigo me contou: preparava-se para assistir, no Pan, à partida final da seleção brasileira de vôlei contra a seleção americana, e eis que a conexão se rompe. Surge na tela uma janela onde estava escrito: indisponível. Ele tentou mudar de canal. Desligou o equipamento, ligou de novo e o aviso continuava lá: indisponível. Depois de tudo tentar, decidiu ligar para o provedor. Atendeu uma voz feminina muito gentil que dizia: para resolver tal problema, disque um; para tal, disque dois, para aquele outro, disque três, e por aí foi: disque quatro, disque cinco, disque seis etc. Depois de ouvir pacientemente aquilo, discou o número que supunha corresponder à sua solicitação. Outra voz atendeu: para tal coisa, disque um; para tal, disque dois; para tal, disque três... e por aí foi. Ele discou um dos números indicados e aí começou outra voz a falar, mas agora fazendo propaganda da programação daquela empresa.
Finalmente, uma voz de homem perguntou-lhe o que desejava. Ele explicou que surgira na tela a tal janela e que não conseguia conectar. A voz perguntou-lhe em que bairro morava e pediu um momento para verificar. Minutos depois, informou: caro cliente, não tenho condição de verificar o seu problema, terá que ligar de novo para ser atendido por outra pessoa. Sem nada entender, ligou de novo e mais uma vez passou por toda aquela tortura a que já tinha se submetido antes e quando, enfim, uma voz feminina o atendeu, respirou aliviado. Só que não havia motivo para alívio: a voz da moça informou-o de que ocorrera uma pane no sistema de reparos e por isso não podia atendê-lo.
- E eu faço o quê?, perguntou meu amigo.
- Não podemos fazer a conexão.
- Sim, e eu faço o quê?
- O senhor terá que esperar até que superemos o nosso problema.
- E isso deve demorar quanto tempo?
- Não sei informar, senhor.
Meu amigo, furioso, berrou que aquilo era um abuso, que ele pagava por aquele serviço, que ele ia perder o jogo do Brasil, mas de nada adiantou. É que estamos nas mãos dele, entendeu?
Contei essa história a outro amigo, que me falou:
- E eu, que estou inadimplente junto ao Banco Central por causa de um cheque de R$ 56!
- Mas como?
- Achando que tinha ainda R$ 100 na conta, paguei o jantar no restaurante com um cheque de R$ 56. Na conta só restavam R$ 30 e, embora nessa mesma conta houvesse uma aplicação de R$ 1.200, o gerente devolveu o cheque, que foi reapresentado pelo restaurante. Tornei-me inadimplente perante a nação brasileira, eu, que nunca recebi mensalão, num participei de valerioduto, nunca vendi vacas inexistentes, nunca me deixei subornar por bicheiros nem traficantes.
- É, amigo, estamos nas mãos deles.

Arquivo do blog