Repetindo o que não se cansa de dizer, aparentemente convicto de haver refundado o Brasil, açambarcou para si, com exclusividade, os créditos pelos inegáveis avanços obtidos a partir do Plano Real - na melhora do perfil das contas públicas (embora, não se esqueça, à custa da elevação da carga tributária a níveis asfixiantes para o sistema produtivo), na contenção da inflação em patamares civilizados e no socorro eficaz aos 45 milhões de brasileiros que dependem do Estado para se manter à tona. Perguntado, a certa altura, como poderia afirmar que o seu grande mérito são os resultados da política macroeconômica, se é a mesma que foi montada pelo governo Fernando Henrique, rebateu de bate-pronto, sem corar: "Você é que diz. Se eu continuasse com a política, o País tinha quebrado."
Ora, seria um desrespeito ao presidente acusá-lo de ignorar que o pesado ajuste fiscal de 2003 - a seu ver, o marco do suposto divórcio do passado - foi, primeiro, mais do mesmo, literalmente; segundo, indispensável para aplacar os temores dos agentes econômicos, desde o empresariado aos mercados financeiros, sobre o que, a julgar por duas décadas de retrospecto, lhes reservaria o PT; terceiro, o desdobramento natural da Carta ao Povo Brasileiro, de junho de 2002, segundo a qual o governo Lula iria "honrar os compromissos assumidos". Se não se visse no papel de salvador da pátria, nem se desentendesse com a verdade, ele daria uma resposta ligeiramente diferente àquela indagação: "Se eu continuasse com a política do PT, o País tinha quebrado."
Esse é o Lula que Lula quer que os brasileiros enxerguem: "Eu talvez seja o presidente mais tranqüilo que já passou pela República brasileira. Acho que nenhum presidente da República teve a tranqüilidade que eu tenho hoje. Estou muito tranqüilo." Pelo visto, reencarnou em Brasília ninguém menos do que o célebre personagem de Voltaire - o dr. Pangloss, para quem tudo, invariavelmente, ia "pelo melhor dos mundos possíveis". E tanto vai, na ficção planaltina, que o presidente nem sequer teve a elegância, para não dizer grandeza, de admitir que tenha cometido um grande erro e identificá-lo, como lhe foi pedido. A tais extremos leva a propensão à vanglória, que, em graus variados, é de esperar de todo governante, que praticamente interdita qualquer reconhecimento espontâneo de seus méritos - que seria desonesto negar.
Um deles, para usar o tipo de metáfora a que não cessa de recorrer, é a aptidão para driblar situações potencialmente embaraçosas, graças à intuição que lhe permite se antecipar a elas, como um zagueiro a um atacante. Talvez por isso, apesar da extensão da entrevista - 71 perguntas -, não deixou campo livre para ser aborrecido por duas questões essenciais: o notório déficit de qualidade de gestão do seu governo e o não menos notório superávit de loquacidade do seu chefe. Uma coisa e outra se combinam para construir uma realidade virtual: salvo as exceções já citadas - equilíbrio fiscal e socorro aos pobres -, as realizações da administração lulista só existem nos discursos que, às mancheias, o presidente profere do seu indesmontável palanque. É a força do verbo camuflando a fraqueza da ação.
Na sabatina, Lula exibiu, também, o seu lado Zelig, calibrando a retórica de acordo com o público visado. Em tempos pós-vaia, de renovados ataques às elites e de reiterada opção preferencial pelos pobres, Lula estipulou as condições necessárias para tornar o Brasil mais justo. De um lado, "ajudar os de baixo a subir um degrau". De outro, "não atrapalhar a vida da classe média".
A primeira, razoavelmente estabelecida. A segunda, ainda por ser criada.