Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, agosto 28, 2007

O presidente ?tranqüilo?

A impressão mais forte que fica da leitura da primeira entrevista exclusiva do presidente Lula a este jornal desde que ascendeu ao Planalto - publicada em quatro páginas na edição de domingo - é a de que, se não pela letra das suas respostas, decerto pelo seu espírito, ele considera ter feito, em pouco mais de quatro anos e meio de governo, tudo o que teria de fazer em oito. Em conseqüência, é como se já se considerasse instalado no panteão da história pela proeza nunca antes vista neste país de ter resolvido ou encaminhado todos os problemas com os quais se deparou ao escalar a rampa do palácio, que se perpetuavam até onde a memória consegue alcançar. Isso ficou escancarado sobremodo nos momentos finais da sabatina.

Repetindo o que não se cansa de dizer, aparentemente convicto de haver refundado o Brasil, açambarcou para si, com exclusividade, os créditos pelos inegáveis avanços obtidos a partir do Plano Real - na melhora do perfil das contas públicas (embora, não se esqueça, à custa da elevação da carga tributária a níveis asfixiantes para o sistema produtivo), na contenção da inflação em patamares civilizados e no socorro eficaz aos 45 milhões de brasileiros que dependem do Estado para se manter à tona. Perguntado, a certa altura, como poderia afirmar que o seu grande mérito são os resultados da política macroeconômica, se é a mesma que foi montada pelo governo Fernando Henrique, rebateu de bate-pronto, sem corar: "Você é que diz. Se eu continuasse com a política, o País tinha quebrado."

Ora, seria um desrespeito ao presidente acusá-lo de ignorar que o pesado ajuste fiscal de 2003 - a seu ver, o marco do suposto divórcio do passado - foi, primeiro, mais do mesmo, literalmente; segundo, indispensável para aplacar os temores dos agentes econômicos, desde o empresariado aos mercados financeiros, sobre o que, a julgar por duas décadas de retrospecto, lhes reservaria o PT; terceiro, o desdobramento natural da Carta ao Povo Brasileiro, de junho de 2002, segundo a qual o governo Lula iria "honrar os compromissos assumidos". Se não se visse no papel de salvador da pátria, nem se desentendesse com a verdade, ele daria uma resposta ligeiramente diferente àquela indagação: "Se eu continuasse com a política do PT, o País tinha quebrado."

Esse é o Lula que Lula quer que os brasileiros enxerguem: "Eu talvez seja o presidente mais tranqüilo que já passou pela República brasileira. Acho que nenhum presidente da República teve a tranqüilidade que eu tenho hoje. Estou muito tranqüilo." Pelo visto, reencarnou em Brasília ninguém menos do que o célebre personagem de Voltaire - o dr. Pangloss, para quem tudo, invariavelmente, ia "pelo melhor dos mundos possíveis". E tanto vai, na ficção planaltina, que o presidente nem sequer teve a elegância, para não dizer grandeza, de admitir que tenha cometido um grande erro e identificá-lo, como lhe foi pedido. A tais extremos leva a propensão à vanglória, que, em graus variados, é de esperar de todo governante, que praticamente interdita qualquer reconhecimento espontâneo de seus méritos - que seria desonesto negar.

Um deles, para usar o tipo de metáfora a que não cessa de recorrer, é a aptidão para driblar situações potencialmente embaraçosas, graças à intuição que lhe permite se antecipar a elas, como um zagueiro a um atacante. Talvez por isso, apesar da extensão da entrevista - 71 perguntas -, não deixou campo livre para ser aborrecido por duas questões essenciais: o notório déficit de qualidade de gestão do seu governo e o não menos notório superávit de loquacidade do seu chefe. Uma coisa e outra se combinam para construir uma realidade virtual: salvo as exceções já citadas - equilíbrio fiscal e socorro aos pobres -, as realizações da administração lulista só existem nos discursos que, às mancheias, o presidente profere do seu indesmontável palanque. É a força do verbo camuflando a fraqueza da ação.

Na sabatina, Lula exibiu, também, o seu lado Zelig, calibrando a retórica de acordo com o público visado. Em tempos pós-vaia, de renovados ataques às elites e de reiterada opção preferencial pelos pobres, Lula estipulou as condições necessárias para tornar o Brasil mais justo. De um lado, "ajudar os de baixo a subir um degrau". De outro, "não atrapalhar a vida da classe média".

A primeira, razoavelmente estabelecida. A segunda, ainda por ser criada.

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