artigo - Paulo Ghiraldelli Jr.
O Estado de S. Paulo
29/8/2007
Quando Francisco Weffort e, depois, José Dirceu tinham o controle do PT (e com isso não comparo um com o outro), a linha social-democrata do partido apresentava um bom discurso. Alguém mais à direita ou à esquerda podia não concordar, mas não diria que o discurso era ruim. Lula, atualmente, está praticamente sozinho. Perdeu seu partido, e o partido se perdeu. Quem escreve seus discursos ou sugere suas falas não acerta de modo algum. E quando o presidente fala de improviso, a linha populista fica acentuada, e já não tem o tom atrativo que conseguiu no passado. O populismo, talvez graças ao próprio PT, não é mais fonte retórica de sustentação política.
Lula se repete de gafes em gafes, de erros em erros, e vai cada dia mais se distanciando dos setores escolarizados, herdando o curral eleitoral do Norte e do Nordeste, que foi do antigo PFL. Para manter os intelectuais ao seu lado, precisa colocá-los em cargos de confiança. Mas não há tanto espaço assim no Conselho Nacional de Educação e similares.
O último exemplo de má retórica do presidente foi para a TV dia 16 deste mês. Lula fez duas comparações sem pés nem cabeça:
Disse que os que o vaiavam eram muito jovens, como se isso fosse um defeito (era uma virtude, para o PT, ter jovens, lembram?), e que não tinham “consciência política”, dado que apareciam ali fantasiados de palhaço, quando “palhaço é uma figura alegre, suave” (e não figura de protesto);
disse que os que criticam a bolsa minguada para os pobres não criticam a bolsa (que seria gorda) para um pesquisador ir para os Estados Unidos.
Quanto à crítica aos “jovens”, nem há muito que comentar; parece que o presidente começou uma frase (que seria sobre a suposta consciência política dos que vaiavam), perdeu o fio da meada e concluiu com uma não-conclusão a respeito do palhaço. Lula já não consegue mais encadear frases com alguma conseqüência lógica.
Agora, sobre a comparação entre bolsa para pobres e bolsa para doutores, há mais o que dizer. O problema não é ele querer comparar políticas distintas. O problemático na frase do presidente é que ela revela novamente que ele não consegue superar uma mágoa que, há mais de dez anos, imaginei que havia superado. Trata-se da mágoa de um dia ter sido chamado por setores conservadores de “analfabeto” e “despreparado”. Lula parece não ter superado, até hoje, a derrota para Collor - o rico - e para Fernando Henrique - o culto. Toda vez que é atacado, ele responde com a “mágoa de classe”. Diz que defende os pobres, mas não pelo fato de que os ricos não gostariam que ele defendesse os pobres, e sim pelo fato de que os altamente escolarizados são desleixados quando se trata de incentivar políticas de proteção dos pobres (se é que tal bolsa para pobres tem alguma eficácia).
Quando Lula pegou o diploma de presidente nas mãos, lembrou que era seu primeiro diploma. Foi uma fala simbólica. Na época, fiquei feliz. E tenho certeza que FHC, que se declarou feliz no episódio, foi sincero. O que Lula, todavia, falou naquele dia tinha um componente subjetivo perverso, que não quisemos ouvir, embevecidos que estávamos com o fato de nossa democracia estar funcionando exemplarmente (chegamos até a comparar nossa perfeição diante da imperfeição americana - Gore havia sido roubado, lembram?). O componente perverso da fala de Lula, na época, agora reaparece: Lula não se conforma com o fato de, mesmo sendo presidente, não entender o que ocorre à sua volta. Ou seja, ele não se conforma por não ter ficado culto e inteligente, mesmo diplomado. É como se ele dissesse para si mesmo: “Eles recebem um canudo e ficam inteligentes e cultos, e eu recebi um canudo, um diploma, e sigo tendo dificuldades diante de um texto mais complexo.” Lula acredita que haja um truque, uma mágica nisso tudo.
O deputado comunista italiano Antonio Gramsci é que falou sobre tal truque; sobre como os mais pobres e, às vezes, menos aptos imaginam haver um truque no aprendizado dos mais aptos e, às vezes, mais ricos. Ser culto, atacar um texto e entendê-lo, e então melhorar a compreensão do que se passa no mundo, depende de um tirocínio que é adquirido com uma disciplina especial, algo que, nos nossos tempos, depende da boa escola e, antes, de uma boa situação pré-escolar. Não existe atalho real para o saber, disse Aristóteles a Alexandre. Os que não passam por tal tirocínio imaginam que os cultos escondam um truque que eles desconhecem. Na procura desesperada pelo “truque”, para desvendar a “mágica”, acabam concluindo que é o recebimento do diploma, talvez, que confira sabedoria.
Lula se parece com a figura citada por Gramsci. O garoto pobre entra na escola e vê o garoto de classe média, na mesma sala, ir melhor do que ele, e acredita que exista um truque. Não sabe que o garoto de classe média está já treinado, desde o nascimento, a acomodar-se numa escrivaninha e dispor todo o seu corpo para o trabalho intelectual. O truque é simplesmente este: as habilidades físicas para ser um intelectual são conquistadas antes mesmo de se entrar na escola, e transformadas numa segunda natureza, no garoto de classe média.
Lula faz parte dos que procuram o truque, e imagina realmente que exista algo de falacioso no procedimento que torna alguém um intelectual. Para ele, basta dar um dinheirinho a um pobre e este irá comer melhor e, então, uma vez na escola, espera um pouco e pega o diploma, que lhe dará sabedoria. Lula não percebe que há saberes que não se aprendem “de oitiva”, que não dependem de vivência sindical e política. Ele não percebe que mesmo a política, hoje, é matéria de estudo. Lula continua brizolado, isto é, faz política segundo sua intuição, nem sempre aprimorada. Ou pior, ficou brizolado após 1989 de uma maneira muito mais acentuada.
Entrevista:O Estado inteligente
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