'O brasileiro tem de assumir a própria lepra!'
Nelson Rodrigues ajuda na luta contra a depressão
Nos últimos dias, dois artigos me interessaram muito: o ótimo texto de Roberto Pompeu de Toledo na “Veja” onde ele diz: “Os distraídos talvez não tenham percebido, mas o Brasil acabou...”; e a reportagem de João Moreira Salles na “Piauí”, acompanhando FH numa viagem, onde o ex-presidente declara: “Que ninguém se engane, o Brasil é isto mesmo que está aí...” e “Continuaremos para sempre nesta falta de entusiasmo, neste desânimo...” Também sinto isso nestes dias sinistros, entre tragédias sangrentas e a aberta desfaçatez de políticos desafiando a República. Às vezes, penso, como cantou Cole Porter: “Que devo fazer? Tomo cianureto ou champagne?” Mas, lendo e relendo esses artigos, eu me pergunto: “Será? Será mesmo que estamos perdidos e mal pagos?” Aí, resolvi pegar meu velho telefone preto e ligar para o Nelson Rodrigues, lá no paraíso onde vive, um céu de teatro de revista, com nuvens de algodão e estrelas de papel d o u r a d o .
Nelson me atende: — Você anda sumido, hein, rapaz!... Está ficando mascarado? — Não, Nelson, estou deprimido com esta suja tragédia nacional. Até o FH, que tem bom humor, está exalando cava depressão...
— Sossega, leão... não é nada disso... “Nunca antes” o Brasil teve a chance luminosa de ver a própria cara! Estamos entendendo que a História marcha pelas brechas, pelos buracos de cupim... Não existem as tais “relações de produção e blocos históricos” — isso é bobagem...
A história é um botequim de pé sujo...
Você viu: o micróbio na barriga do Tancredo Neves mudou o curso do país; tudo ia bem e acabou sob o bigode do Sarney. E o ciúme do Pedro Collor não provocou o impeachment? Mais atrás, um porre do Jânio embaralhou a pátria! Ou não? É assim, rapaz...
Veja você o Renan... Estou acompanhando tudo como um folhetim de mim mesmo: a amante, a “gestante”, os envelopes de jabá, a fidelidade obstinada da esposa enganada, os oposicionistas no Congresso tremendo de medo de que ele revele o nome das namoradas...
Todos têm amantes em Brasília... Lá não há inocentes, todos são cúmplices... O Brasil está parado por um adultério financiado por uma empreiteira! Outro dia mesmo, a História mundial mudou por causa da Monica Lewinsky... Bush foieleito por ela e pelo moralismo dos americanos contra o Clinton e o Gore... A Guerra do Iraque começou entre seus lábios! Aqui, também é assim... Aliás, eu acho o Renan muito educativo. Ele nos ensina que o egoísmo privado é a Pedra da Gávea que resiste a todo interesse público... E a classe média, que babou na própria gravata durante séculos, está acordando da própria estupidez. Qualquer vendedor de Chicabon já entende de economia, nunca contemplamos nosso destino de vira-latas com tanta nitidez...
Quer ver outra coisa boa que aconteceu? A desmoralização dos bolchevistas de galinheiro que encantavam a consciência dos intelectuais... Estão todos de rabo entre as pernas, se esgueirando pelos cantos das universidades... Descobriram que a “revolução brasileira” era o oximoro perfeito: a “revolução reacionária”. É verdade que sobraram os pelegos sindicalistas roendo o Estado como rapadura, mas é melhor que o bolchevismo do Dirceu, que ia destruir o Plano Real, em nome do povo... Aliás, cá entre nós, o Dirceu está podre de rico, fazendo negócios com os comunas latinos. Ele bate nas algibeiras e berra, ovante e jucundo: “Dinheiro há! Dinheiro há!” E a indústria das indenizações pela ditadura, comandada pelo Greenhalgh? Dizem que ele já tem até piscina com chafariz e filhote de jacaré! Qualquer sujeito que levou um tapa da polícia na ditadura pediu indenização: trinta contos por mês...
Quer ver outra coisa boa? Acabou a idéia de “utopia”... Ninguém sabia direito o que eraisso, pensavam que era a mulher do Prestes, a Dona Utopia... Pois, acabou, hoje aprendemos que o que interessa é a “administração”, que um país só cresce se for como um armazém, com o português de lápis atrás da orelha, fazendo contas...
Sabe por que você e seus amigos intelectuais, como o doce Roberto Pompeu, estão tristes? Porque no fundo vocês ainda acreditam em uma “harmonia futura”... Maquiavel acabou com essa ilusão do Platão há muito tempo... Aliás, o Maquiavel fica rindo do Hegel aqui em cima, que anda muito deprimido. Rapaz... a História é uma selva de epilépticos, a História não é um piquenique, não. E tem mais: debaixo desses escândalos e tragédias, muitos fios vão se tecendo. As “coisas” têm vida própria... De noite, microrrevoluções se passam, nas insônias das pessoas... Por exemplo, a oposição se derreteu, mas a imprensa está fazendo gol de bicicleta... As coisas se movem no escuro...
E tem o Acaso, também. Por exemplo, esse Lula tem sorte pra burro, rapaz; se ele der um palpite do bicho, joga na cabeça, porque ganha... Ele herdou a inflação zero do FH, diz que foi ele que fez, e ainda pegou a economia numa fase rara! O Milton Friedman chegou aqui outro dia e me disse: “Olha, Nelson, eu achava que ‘não tinha almoço de graça’, não. Mas tem. O Lula está comendo de graça”. Esta crise aí passa logo e, com a economia funcionando, temos a chance única de assistir ao teatro de revistas do Brasil... O primeiro passo para a reconstrução nacional é a desmoralização absoluta! O Jorge Luis Borges, que anda por aqui tropeçando nos anjinhos, disse que a “esperança é o mais sórdido dos sentimentos...” Ele não é burro, não... A frase é boa — o Otto Lara está com uma inveja danada...
O único perigo seria uma quebradeira econômica.
Aí o Lula poderia querer venezuelizar a coisa e chamar os analfabetos para cerrar fileiras e criar a tal Assembléia Constituinte, mas o Tocqueville me garantiu que acha difícil, porque o Lula não é o Chávez, aquele leão-de-chácara da Praça Mauá... O Brasil é mais complicado...
Olha, rapaz, o sujeito e os países só se salvam se assumirem a própria miséria, a própria lepra!... Em vez de reclamar, vocês deviam se agachar e beber a água da sarjeta! Ela é a salvação!...
— Obrigado, Nelson, ganhei mais um dia...
Entrevista:O Estado inteligente
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