Certamente que pecaria pelo exagero colar às convicções populistas do presidente Lula os três clássicos adjetivos que desfilam na definição das propriedades da água: insípida, incolor e inodora.
Lá é verdade que a liderança consolidada do presidente passa a impressão de que está sempre em plena campanha eleitoral, mas não costuma afirmar-se no enquadramento com os modelos da polarização ideológica do centro versus esquerda. Com freqüência, declara-se de esquerda até para não ser acusado de vira-casaca nos flertes com a banda conservadora.
A flexibilidade do jogo de cintura facilita o trânsito pelas áreas da conveniência do xadrez político. Ainda há bem pouco tempo, nos meses que se arrastaram nas intermináveis articulações, manobras, promessas, conchavos e transações para a montagem da sólida maioria parlamentar nas duas Casas do Congresso, o presidente engoliu sapos e lagartos e deu voltas na parolagem para justificar as mais estapafúrdias alianças. Lembrou o sábio conselho que mudou o seu destino, quebrando a praga de três derrotas consecutivas para abrir passagem ao corso da eleição e da reeleição consagradora com mais de 58 milhões de votos: empacar no canto do radicalismo de esquerdista era a receita de novo infortúnio nas urnas. Para ganhar a eleição teria que adoçar o discurso para torná-lo palatável à faixa que financia a campanha e molda a opinião pública e que vai dos conservadores, empresários, empreiteiros até a classe média.
Pelos rombos na lona entraram no picadeiro para participar da função, desde os salvados das CPIs do mensalão e do caixa 2 aos que escaparam, com ligeiras escoriações, do festival das absolvições da Câmara e do Senado.
Ninguém mais estranha ou cobra a rotineira presença nas rodas palacianas de inimigos da véspera ou dos perdoados nas cambalhotas do interesse: Jader Barbalho, Orestes Quércia, Paulo Maluf, Newton Cardoso e, no fim da longa fila, o novíssimo ministro-secretário e mago Mangabeira Unger.
O presidente deu uma guinada de esperto oportunismo ou do simples reconhecimento da necessidade de um ajuste no seu esquema para enfrentar o desafio do próximo ano eleitoral, com as muitas tormentas previstas para a longa travessia. As vaias do Maracanã na inauguração do Pan e que começam a se repetir, em tom menor, nas aparições públicas; as cobranças da classe média espremida pela carga tributária recordista, penalizada pelo fracasso administrativo que assume as dimensões de calamidade no apagão aéreo da bagunça de aeroportos, dos horários dos vôos; o estado lastimoso da rede rodoviária, dos portos, da segurança, da saúde pública, com a falência de hospitais em vários Estados e por todo o país - despertaram o seu agudo senso de sobrevivência.
Lula deu meia-volta e ficou de frente para o seu tesouro de votos no Norte e no Nordeste, dos que nada tinham, e 22,5 milhões (49% do total dos 45,8 milhões) foram contemplados com o Bolsa Família.
No meio das 15 mil trabalhadoras rurais que, em Brasília, desfilaram na Marcha das Margaridas, o presidente afinou o tom para a temporada de improvisos na campanha para as eleições municipais do próximo ano.
No discurso brasiliense, o ensaio para a maratona dos palanques: "Eu digo todo santo dia que sou presidente de 190 milhões de habitantes, mas não tenho dúvida de que a minha preferência é fazer política para a parte mais pobre da sociedade brasileira, que é quem precisa do Estado brasileiro".
O recado está dado. Com todas as letras. Algumas, dispensáveis.