Especial
Coração intocado
Angioplastia e remédios diminuem a
necessidade de cirurgias cardíacas
Anna Paula Buchalla
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O médico Trajano Vayas lembra-se em detalhes daquela sexta-feira, 13 de setembro de 1996. Como de costume, ele acordou pouco antes das 7 da manhã. Mas, ao se levantar, imediatamente caiu no chão. Por alguns segundos, seu coração parara de bater. Levado ao hospital, só havia uma opção: ele deveria ser operado. O peito foi aberto para a colocação de duas pontes de safena e uma mamária. Passaram-se seis anos e uma de suas pontes também entupiu. Dessa vez, Vayas foi poupado da mesa de operação. Seu coração foi revascularizado graças a uma angioplastia, que remove placas de gordura das artérias por meio de um cateter. Desde o início desta década, ele passou por mais duas angioplastias. Atualmente, suas artérias mantêm-se desobstruídas graças a um coquetel de remédios. O caso de Vayas ilustra uma revolução na cardiologia: as cirurgias, antes inevitáveis em caso de infarto e outras ocorrências similares, perderam terreno para os procedimentos menos invasivos e para os medicamentos que ajudam a prevenir novos ataques. "Vive-se uma nova era na cardiologia, com uma redução considerável na indicação das operações coronárias",diz o cardiologista Raul Dias dos Santos, diretor da unidade clínica de lípides do Instituto do Coração (Incor), de São Paulo.
Ao longo dos últimos dez anos, os principais centros de cardiologia do mundo registraram uma queda de 30% no número de cirurgias de revascularização, como as pontes de safena e mamária. Hoje, de cada três intervenções para a desobstrução arterial, apenas uma é cirurgia. As outras duas são angioplastias. A tendência é que mesmo a angioplastia perca espaço para os tratamentos clínicos, com remédios. Os antigos conceitos começaram a ser revistos com a publicação de pesquisas comparativas sobre a eficácia das cirurgias, da angioplastia e do acompanhamento clínico para os pacientes vítimas de obstruções arteriais. Os trabalhos mais recentes indicam que, para os doentes crônicos, as três técnicas oferecem resultados semelhantes. Sendo assim, por que abrir o peito do paciente se o problema dele pode ser resolvido com um cateter ou simplesmente um remédio?
Otavio Dias de Oliveira | REMÉDIOS QUE SALVAM A dona-de-casa Gisleine Calpacci teve uma ameaça de infarto. O problema dela foi controlado graças a um coquetel de comprimidos |
Dos estudos sobre a conduta mais adequada no tratamento de doentes cardíacos, dois merecem destaque. Um deles, o Mass II, foi conduzido pelo cardiologista brasileiro Whady Hueb, do Incor. Durante cinco anos, o médico e sua equipe compararam a evolução de cerca de 600 pacientes, divididos em três grupos. Os pertencentes ao primeiro foram tratados com remédios e mudanças de hábitos de vida. Os do segundo, submetidos à angioplastia. E aqueles agrupados no terceiro conjunto, encaminhados à colocação de ponte de safena ou mamária. Avaliou-se a incidência de infarto e morte nos três grupos. Tema de capa da edição de março da revista americana Circulation, uma das principais revistas científicas da cardiologia mundial, o Mass II mostrou que praticamente não houve diferença de resultados.
O segundo estudo é o americano Courage. A análise de quase 2 300 pessoas pretendia avaliar se a angioplastia, associada a um tratamento clínico rigoroso, superava a terapia à base apenas de remédios. Depois de quatro anos e meio de acompanhamento, chegou-se à conclusão de que não houve diferenças nas taxas de mortalidade, infarto ou derrame entre os que fizeram angioplastia e os que tomaram somente medicamentos. O principal autor do Courage, o médico William Boden, professor de medicina e saúde pública da Universidade Buffalo, nos Estados Unidos, escreveu: "A evolução das terapias medicamentosas elevou o tratamento clínico ao patamar das técnicas intervencionistas, ainda hoje a primeira opção de muitos cardiologistas". Os resultados desse trabalho foram apresentados no último Congresso do Colégio Americano de Cardiologia, realizado no início do ano, e – como era de esperar – causaram polêmica. "A principal crítica ao estudo é o fato de que seus autores não incluíram no protocolo da pesquisa os stents farmacológicos, que aumentaram a eficácia da angioplastia em até 90%", diz o cardiologista José Eduardo Sousa, diretor médico do Hospital do Coração, de São Paulo. Os stents são próteses metálicas que, colocadas no interior de artérias coronarianas obstruídas, normalizam o fluxo de sangue para o coração. Os mais modernos são recobertos por medicamentos que inibem o crescimento de tecido – o que reduz os riscos de uma nova obstrução. Com eles, apenas 2% dos pacientes têm de passar por uma segunda intervenção em seis meses. Com os stents tradicionais, o índice de reobstrução chega a 20%.
É bom que se frise que as pontes de safena e mamária continuam a ser imprescindíveis nos casos de pacientes de altíssimo risco – como os diabéticos ou aqueles que apresentam o músculo cardíaco comprometido e mais de três artérias obstruídas. Para eles, a cirurgia ainda é o método mais recomendado para aumentar a sobrevida e aplacar os sintomas recorrentes da doença coronária, como a dor. Obviamente, a recuperação é mais delicada e sofrida. Muitas pessoas, no período pós-operatório, são acometidas de depressão. Esse quadro, contudo, é passageiro. Também não se duvida de que a angioplastia tem resultados superiores em pacientes de urgência – aqueles que estão infartando – ou em vítimas de dores agudas, mas não contínuas (as anginas instáveis). Mas é certo que, em relação aos pacientes com doença coronariana estável, o tratamento medicamentoso, por si só, tem se revelado eficiente.
A primeira angioplastia realizada com sucesso em seres humanos data de trinta anos atrás. O pioneiro foi o médico alemão Andreas Grüntzig. De lá para cá, a sua aplicação expandiu-se velozmente. Ela foi fundamental para a queda pela metade do número de mortes por ataque cardíaco verificada desde o fim da década de 90. Comparada aos procedimentos mais invasivos, a angioplastia é extremamente simples. A internação não costuma passar de dois dias, e, em uma semana, o paciente está habilitado a voltar às atividades rotineiras. No Brasil, em 2006, estima-se que tenham sido feitas 80 000 angioplastias, de acordo com dados do Sistema Único de Saúde – quase o dobro do número de cirurgias cardíacas de grande envergadura.
Daniel Aratangy |
ELE PASSOU POR TUDO O médico Trajano Vayas: dez anos atrás, cirurgia; hoje, angioplastia e remédios |
A maior surpresa, no entanto, é a constatação de que os remédios podem ser tão eficazes quanto uma angioplastia ou uma operação. Hoje, os médicos lançam mão de combinações de remédios como estatinas, anti-hipertensivos e aspirina. As estatinas, lançadas em meados da década de 80, revolucionaram a prevenção e o tratamento do colesterol alto, um dos piores inimigos do coração. Entre os remédios mais eficazes para controlar a pressão sanguínea estão os inibidores da ECA. Foi um desses coquetéis que salvou o coração da dona-de-casa Gisleine Calpacci, de 55 anos. Com as artérias obstruídas, ela quase infartou. No passado, Gisleine iria direto para a mesa de cirurgia. Seu médico, no entanto, optou pela terapia medicamentosa. Graças aos nove comprimidos diários, ela está bem.
Há pouco mais de três anos, descobriu-se a existência de placas moles de gordura, um veneno escondido nas artérias. A corrente mais moderna da cardiologia sustenta que 70% dos infartos se devem a elas. Indetectáveis por meio de exames convencionais, como o ecocardiograma, o cateterismo ou o teste de esforço cardíaco, elas se desprendem e entopem as artérias, levando ao infarto. Nem as cirurgias nem a angioplastia são capazes de destruir essas placas, formadas por cálcio, colesterol e outras gorduras circulantes. Contra elas, o que há de mais efetivo é o tratamento agressivo com remédios que baixam o colesterol e a pressão arterial, além de mudanças no estilo de vida. Essa descoberta ajudou a reduzir o número de procedimentos invasivos até em pacientes que já sofreram infarto.
A queda no número de operações cardíacas para a colocação de pontes de safena ou mamária começa inclusive a mudar o perfil dos cirurgiões. Os mais experientes estão migrando para outras áreas, como a da cirurgia torácica. Os mais jovens, por sua vez, enfrentam dificuldades para conseguir trabalho. Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos com cerca de 100 residentes em fase final de treinamento mostrou que 12% deles não haviam recebido nenhuma oferta de trabalho para exercer a cirurgia cardíaca, conforme artigo publicado na revista médica Annals of Thoracic Surgery. No Brasil, a tendência é a mesma. "Os residentes de cirurgia cardíaca estão desistindo da especialidade, porque esse campo se restringiu bastante", diz o cardiologista Eduardo Sousa, diretor médico do Hospital do Coração. "Ao mesmo tempo, aumentou a procura por residência em cirurgia vascular, em que há a opção de operações menos invasivas, feitas por intermédio de cateter." Até outras grandes cirurgias cardíacas, como as de implantação de válvulas e as de correção de anomalias, por exemplo, já podem ser feitas por meio de cateter – ou seja, não precisam ser realizadas necessariamente por um cirurgião cardíaco que abra o peito do paciente. "Imagine um salão de baile, com os cirurgiões cardíacos em um canto, sem que ninguém os tire para dançar: essa é a situação desse mercado hoje em dia", compara Kurt Mosley, vice-presidente da consultoria Merritt, Hawkins & Associates, especializada na área de saúde, em entrevista ao jornal americano USA Today. "Dez anos atrás, contudo, eles eram os primeiros a ser chamados para dançar."
A cirurgia cardíaca é um campo relativamente novo da medicina. Por muitos anos, o coração foi considerado um órgão intocável. Em 1881, o médico austríaco Theodor Billroth, pioneiro da cirurgia abdominal, declarou: "Qualquer cirurgião que vier a tentar uma operação do coração deveria perder o respeito de seus colegas". A primeira cirurgia cardíaca seria realizada quinze anos depois da declaração de Billroth pelo alemão Ludwig Rehn. Em setembro de 1896, ele suturou com sucesso um ferimento no ventrículo direito do coração de um rapaz de 20 anos. Em 1902, em um artigo publicado na revista da Associação Médica Americana, fazia uma observação curiosa: embora a distância para um bisturi chegar ao coração não seja maior do que 1 polegada, passaram-se 2 400 anos até que a cirurgia pudesse percorrer esse caminho. A primeira cirurgia de revascularização seria realizada em 1967, na Cleveland Clinic. "Durante muito tempo, por falta de opção de tratamento, safenas e mamárias constituíam a norma", diz o médico Raul Santos. Era absolutamente necessário entrar na faca para sair com vida. Hoje, o que está saindo de cena é a faca.