O Bolsa Família já chega a um em cada quatro
brasileiros – mas sem que se abra uma saída
para o ciclo da miséria
Giuliano Guandalini
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Um em cada quatro brasileiros vive hoje com a ajuda do Bolsa Família. São 11,1 milhões de famílias, ou 46 milhões de pessoas, segundo estudo divulgado na semana passada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Metade dos beneficiários está no Nordeste, onde há 5,5 milhões de famílias sob o cobertor do assistencialismo do estado – o equivalente à população de toda a Grande São Paulo. Isso significa que, a cada dois nordestinos, um recebe o Bolsa Família. Não é pouca coisa. Nem o mais notório programa social da história – os food stamps, cartões-alimentação do período da Grande Depressão americana – teve alcance similar. Entre 1939 e 1943, os food stamps não chegaram a beneficiar mais de 4 milhões de pessoas por mês, ou menos de 3% da população dos Estados Unidos à época.
Felizmente, pesquisas indicam que o ambicioso programa brasileiro é bem direcionado e contribui para reduzir a desigualdade de renda no país. No entanto, peca ao não abrir portas de saída para seus assistidos. Uma vez inscritos no programa, são pouquíssimos os que o deixam, ao contrário do que ocorria com os food stamps. Assim, o Bolsa Família transformou-se num meio de vida, e não numa ajuda emergencial e transitória. Nas áreas mais pobres, como o sertão nordestino e o mineiro, já há falta de mão-de-obra para a lavoura. Em vez de roçarem ou semearem, os ex-agricultores preferem ficar em casa, sacando mensalmente sua parcela do Bolsa Família ou algum outro benefício. Por isso se tornou extremamente difícil – se não impossível – que qualquer governo se sinta em condições de eliminá-lo no futuro, mesmo se ele se tornar obsoleto.
Como, então, resolver o problema? Uma das soluções é ampliar as condições para que o benefício seja concedido e, talvez, estipular prazos de duração. Caso contrário, o programa se encerrará num assistencialismo fácil – equiparável a lançar dinheiro de helicóptero sobre regiões castigadas pela fome. Quem ganha o Bolsa Família pode até abandonar a miséria extrema, mas não vislumbra a oportunidade de saltar de classe social – afinal, cada atendido ganha, em média, 15 reais por mês. De acordo com os estudiosos, a redução efetiva da desigualdade depende de dois fatores: o investimento em educação de qualidade e o acesso ao crédito. Daí a importância de iniciativas como o microcrédito idealizado pelo economista Mohammad Yunus, ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 2006. Há trinta anos, Yunus fundou em Bangladesh o Banco Grameen e ajudou assim a alicerçar as fundações do microcrédito em vários outros países – menos no Brasil, onde a iniciativa ainda é tímida. O Grameen funciona, grosso modo, como uma grande cooperativa. Os juros são reduzidos, e a inadimplência é baixíssima. Os valores emprestados são módicos, mas suficientes para que as pessoas mais humildes dêem o pontapé inicial em pequenos negócios. O dinheiro dos repagamentos permite que o crédito se espalhe para outras famílias.
Mas, para reverter a pobreza, o ponto vital é mesmo a educação. Quanto maior a diferença do nível educacional entre as pessoas, mais desigual tende a ser a distribuição de riqueza. Aqueles que estudaram por mais tempo e nas melhores escolas ficam com os empregos de remuneração mais elevada, perpetuando assim desigualdades seculares. Desde a década de 70, graças a estudos do professor Carlos Langoni, sabe-se que a educação pública ruim está na raiz da desigualdade social brasileira. Ainda assim, a questão mal começou a ser atacada – e o que não falta é dinheiro público. O Brasil, ao contrário do que faz parecer a precariedade dos serviços públicos, é na verdade um dos países que mais gastam em assistência social no mundo. Apenas europeus despendem mais no setor (veja quadro ao lado). O custo da assistência social bancada apenas pelo governo federal – incluindo programas como o Bolsa Família, Previdência, educação e saúde – ultrapassou 300 bilhões de reais no ano passado, um aumento de 40% em relação a 2003. Como dinheiro não cai do céu nem dá em árvore, esse avanço só foi possível graças a um rápido aumento da arrecadação de impostos. Essa tem sido a receita de sucessivos governos: tributar mais para gastar mais. O paradoxo é que a elevação da carga de impostos estrangula o potencial de crescimento econômico – e retarda a diminuição da pobreza. Uma saída seria aproveitar o espetacular aumento da arrecadação para diminuir impostos ou eliminá-los. O governo poderia, por exemplo, enterrar de vez a CPMF (veja quadro abaixo), tributo que veio para ser provisório e, como o Bolsa Família, tende a se perenizar. Mas não há sinais disso, ao contrário. O governo se esforça para prorrogar, por mais quatro anos, a cobrança da CPMF.
O Bolsa Família, reconhecem todos os especialistas no assunto, tem seus méritos. Como gosta de dizer o economista José Márcio Camargo, professor da PUC-Rio e um de seus criadores, o programa é como um investimento no futuro dos filhos dos beneficiados. Isso porque, sem essa ajuda, as crianças deixariam de ir à escola para trabalhar. Mas, obviamente, de nada adianta as crianças irem ao colégio se não aprenderem nada. Nos últimos anos, o Brasil avançou muito na universalização do ensino, mas a qualidade deixa a desejar, para dizer o mínimo. Como resultado, é muito provável que os filhos das famílias que vivem hoje sob o guarda-chuva do Bolsa Família tenham o mesmo destino de seus pais. Como resumiu à perfeição o historiador Marco Antonio Villa, em um artigo publicado na Folha de S.Paulo: "O Bolsa Família está criando uma geração de Jecas Tatus high-tech, cuja diferença em relação à matriz lobatiana é a utilização do cartão magnético para sacar o benefício. E pobre daquele que no futuro pensar em diminuir ou cortar tais benefícios: estará assinando sua certidão de óbito política".
Valter Campanato/ABR
Mário Ângelo/Folha Imagem |