O Globo
29/8/2007
As decisões do Supremo Tribunal Federal no processo do mensalão refletem um claro posicionamento político da mais alta Corte jurídica do país. Está dito nas entrelinhas do voto do relator Joaquim Barbosa, que vem sendo acompanhado na imensa maioria das vezes pela unanimidade do plenário do Supremo, que é preciso ter mais ética na condução dos assuntos de Estado. Esta foi a maior derrota política já sofrida por um governo nos últimos tempos, mesmo que esteja explícito que não está sendo analisado o mérito das acusações, mas que apenas os ministros consideraram que os indícios de que foram cometidos crimes são suficientes para que as investigações sejam aprofundadas no curso de um processo criminal.
O caso do ex-ministro José Dirceu é o mais emblemático da situação difícil em que está metido o governo Lula: com o recebimento da denúncia de que praticou corrupção ativa, seu status é de réu num processo criminal. Além disso, ele foi considerado pelo Supremo como o membro principal da quadrilha que, segundo a denúncia do procurador-geral Antonio Fernando de Souza, foi organizada dentro do Palácio do Planalto para comprar apoio político ao governo.
A defesa de Dirceu alega que interessa a ele que o processo seja rápido, mas que dependerá da ação dos demais advogados. Para apressar o processo criminal que será instalado, o STF poderá delegar a membros dos tribunais e aos juízes, dentro de sua competência territorial, a função de inquirir acusados e testemunhas, através da expedição de "cartas de ordem". É o que determina a lei 8.038, de 28 de maio de 1990, que cuida dos processos perante o STF e o STJ, em seu artigo 9º, § 1º, redigido nos seguintes termos: "O relator poderá delegar a realização do interrogatório ou de outro ato da instrução ao juiz ou membro do tribunal com competência territorial no local de cumprimento da carta de ordem".
Seria uma boa atitude do Supremo se valer dessa legislação para que o processo não se transforme em mais uma novela política. Na falta de coisa melhor, os petistas alegam agora, diante da decisão do STF de aceitar as denúncias de peculato, lavagem de dinheiro, corrupção ativa e passiva e formação de quadrilha contra a cúpula do PT, do governo e dos partidos da base aliada no Congresso do primeiro mandato do presidente Lula, que o processo criminal nem começou e que ninguém ainda pode ser considerado culpado.
O próprio presidente, na entrevista que deu ao "Estado de S. Paulo" domingo, bate mais uma vez na tecla de que somente depois de encerrado todo o processo criminal se poderá ter uma idéia clara do que aconteceu, e que os inocentados merecerão o pedido de desculpas de seus acusadores. Seria o caso de saber se Lula ou alguém do PT pediu desculpas públicas ao ex-presidente Fernando Collor, que, cassado pelo Congresso por corrupção, teve denúncia aceita pelo Supremo e posteriormente acabou não sendo condenado por falta de provas.
Ontem mesmo o relator, ministro Joaquim Barbosa, salientou que durante o processo criminal será preciso que o Ministério Público aprofunde as investigações para obter provas mais fortes que os indícios apresentados. Com isso, quis chamar a atenção para o fato de que são etapas distintas a que está sendo realizada agora, com a aceitação das denúncias, transformando os acusados em réus, e o posterior processo criminal, onde a condenação dependerá de novas e mais consistentes provas.
Como também salientou o ministro Celso de Mello, na democracia não cabe ao acusado provar sua inocência. Ao contrário, cabe ao acusador, no caso o Ministério Público, provar a culpa do réu. Muitos réus escapam da condenação não por serem inocentes, mas porque conseguiram cometer crimes e evitar que fossem produzidas provas contra eles, como no caso de Collor, que, no entanto, foi condenado politicamente.
Outros, como Paulo Maluf, conseguem escapar da Justiça devido à idade, ou a expedientes como a prescrição de penas, com a postergação dos processos judiciais através de artifícios que a lei permite. No caso do mensalão, já existe, desde a condenação das CPIs no Congresso, a decisão política de expor publicamente as negociatas criminosas que foram patrocinadas durante o primeiro governo Lula.
A decisão dos juízes do Supremo é mais um passo no sentido de informar à sociedade que não é aceitável a formação de uma quadrilha dentro do governo para comprar apoio político no Congresso. Caberá agora aos partidos políticos transformar essa sinalização dos juízes em uma informação concreta para a sociedade brasileira, dando-lhe o cunho político que tem, de rejeição da falta de ética na política.
Desde a deposição e cassação do ex-presidente Fernando Collor, comandadas pelo PT e pelos chamados movimentos sociais, que a sociedade brasileira imaginava ter ultrapassado um obstáculo fundamental para a real implantação de uma democracia no país, depois de encerrado o período ditatorial. O fato de que o maior escândalo de corrupção já registrado no país tenha ocorrido exatamente no governo do PT, que se apresentava como a alternativa ética da prática política, provocou um choque de realidade que tem gerado sensação de mal-estar e frustração com a atividade política, que processos como o do presidente do Senado, Renam Calheiros, só fazem aumentar.
A sinalização do Supremo Tribunal Federal, na direção de punição de ações criminosas ocorridas à sombra do governo, e a favor de uma política baseada na ética e na transparência dos atos públicos, é mais uma chance que damos à democracia brasileira.
Entrevista:O Estado inteligente
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