PANORAMA ECONÔMICO |
O Globo |
28/8/2007 |
O momento é histórico não pelo resultado final da aceitação da denúncia do mensalão, mas pelo trabalho minucioso e técnico que o STF fez. É histórico porque a maioria dos ministros foi escolhida pelo atual governo, inclusive o relator, e não tem havido sinal de que o debate ou os votos estejam contaminados por quaisquer inclinações político-partidárias que os ministros eventualmente tenham. Tudo parece mais organizado no voto do relator Joaquim Barbosa, mas este caso é um dos mais complexos e intrincados dos tantos que vêm estourando na nossa vida pública. Há muita gente envolvida, de partidos diferentes, várias instituições financeiras, empresas de publicidade prestando serviços inteiramente alheios aos usuais, muito dinheiro sendo transferido de um lado para o outro de maneira totalmente irregular e à margem do sistema bancário. Há promiscuidade entre o público e o privado e uso do Estado como se fosse propriedade partidária. Um fato emblemático desse uso é que uma pessoa que nunca foi nomeada para coisa alguma no governo, Silvinho Pereira, distribuía cargos públicos. Ele e Delúbio Soares chegaram a fazer reuniões no Palácio do Planalto. Neste caso, há confissão do publicitário da campanha presidencial de que recebeu dinheiro sem comprovação e em remessa irregular para o exterior. Há ainda muita mentira, contradição e deliberada dissimulação em cada um dos vários eventos em que o caso se desdobra. Há, inclusive, indícios de que "tudo isso não prescindia da ciência e do acordo" do então ministro-chefe da Casa Civil. Pôr ordem neste caos foi resultado de trabalho exaustivo. O momento é histórico porque o julgamento do STF atinge diretamente a cúpula do partido do governo e da estrutura de governo do primeiro mandato do presidente Lula. O presidente pode dizer que seu governo foi absolvido pelas urnas, como repetiu ao "Estadão" neste fim de semana; que nem seu governo, nem o PT estão envolvidos, mas, sim, "algumas" pessoas do partido. Ele pode, inclusive, repetir o que disse em entrevista ao "Roda Viva": "Eu tenho certeza de que não teve mensalão. Isso me cheira a folclore no Congresso." Mas a verdade cristalina é que os que vão se sentar na cadeira dos réus tiveram muito poder em seu governo, foram ministros, trabalharam em sua campanha, comandaram o partido, fizeram parte da sua base parlamentar ou prestavam serviços a bancos e órgãos públicos durante seu mandato. A primeira das explicações dadas pelo presidente foi de que o PT tinha feito o que era feito "sistematicamente neste país". O que o Supremo está dizendo é que, em tudo o que foi feito, há sistematicamente sérios indícios de crime. Esta é apenas a fase de analisar os indícios, como repetem os ministros, não é ainda o processo penal. Mesmo assim, o que a aceitação da denúncia mostra é que há uma chance de se estabelecer um ponto a partir do qual haja mais controle sobre a ação das pessoas públicas no país. Se nada fosse feito, se a denúncia não fosse aceita, aí, sim, viraria prática costumeira toda aquela lambança que veio a público. O que assusta é que alguns fatos presentes no escândalo do mensalão continuaram acontecendo. No caso da compra do dossiê no Hotel Ibis, R$1,7 milhão em espécie, sem comprovação de origem, foi encontrado nas mãos de membros do comitê de campanha da reeleição presidencial. E até agora o Ministério Público sequer denunciou aqueles que o presidente definiu, com leveza, de "meninos aloprados". Há, de novo, coincidências na cooptação para a base política do governo. Na última legislatura, por exemplo, o PL recebeu 21 deputados. Ele foi um dos campeões do mensalão. Depois do escândalo, o partido trocou de nome para PR e, na atual legislatura, foi o partido que mais recebeu deputados vindos da oposição: elegeu 23 e hoje tem 39. Mais que tentar encontrar um elo entre a votação e o dinheiro que comprovadamente foi transferido para os partidos que aderiram, antes ou depois das eleições, ao governo Lula, basta considerar a adesão em si. Os que receberam dinheiro alegaram sempre que foi para pagar "despesas de campanha", e isso virou uma explicação universal que, aparentemente, transformava todo ilícito em aceitável. O que o STF está dizendo é que não há qualquer prestação de contas, que os partidos não se deram ao trabalho de comprovar nada do que diziam ser pagamento de despesas de campanha. O Supremo está também corrigindo a pizzaria que houve na Câmara, onde foram cassados apenas três: Roberto Jefferson, Pedro Corrêa e José Dirceu. Os outros escaparam ou com o recurso de renunciar para não ser julgado ou simplesmente foram absolvidos. A absolvição de João Magno foi comemorada com aquela acintosa dança da deputada Ângela Guadagnin. Mas ele é réu e ela, ex-deputada. Os processos serão longos, e vários dos réus podem ser inocentados no decorrer do julgamento, mas seria um retrocesso se as ações fossem tão demoradas que eles escapassem por prescrição. O Brasil precisa construir diques contra a inundação dos atos ilícitos que domina a política brasileira; do contrário, serão as próprias instituições que estarão em risco. O que está acontecendo no STF é um momento de resistência à nefasta tendência da leniência com os crimes de políticos e poderosos. |
Entrevista:O Estado inteligente
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