Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, agosto 28, 2007

Arnaldo Jabor

João Cabral nos mostra o Brasil em negativo
Um dos maiores poetas do mundo está sendo relançado

Aeditora Objetiva está lançando agora a obra completa de João Cabral de Melo Neto, pela coleção Alfaguara, e, assim, revitaliza um dos maiores poetas do mundo, que muito brasileiro desconhece. Isso lembrou-me uma das frases mais profundas que conheço sobre a serventia do artista, que é de Paul Cézanne: “Eu sou a consciência da paisagem que se pensa em mim”. Essa ligação com a natureza perdida, esse apagamento da distância entre sujeito e objeto, essa renúncia ao sonho individual da “iluminação de um indivíduo inspirado”, o desejo de ser apenas uma coisa-do-mundo, tudo isso me lembra João Cabral de Melo Neto, de quem se pode dizer: ele foi “a consciência da linguagem se falando nele”.

Ele sabia disso: “Eu só falo das coisas e, de certa forma, estou falando de mim por elas...” Em geral, os críticos o definem como o poeta brasileiro que nos ensinou a “não perfumar a flor, nem poetizar o poema”, a propósito de seu estilo seco, como se ele fosse apenas um faxineiro dos parnasianos e dos palavrosos. Mas João foi muito mais que isso.

Se, por exemplo, examinarmos o seu extraordinário poema “Uma faca só lâmina” (um dos maiores da língua portuguesa), veremos que ele é um dos raros artistas que tentaram passar “além da arte” e entrar numa terra-deninguém que poucos visitaram, uma w as te land, um latifúndio pré-linguagem, querendo o impossível: atingir o “real”, essa “terra não descoberta”, avistada por alguns como John Donne, mais tarde, por Francis Ponge, Marianne Moore, gente que não estava apenas fazendo poesia, mas epistemologia. Para mim, João Cabral fez uma teoria da percepção.

Antes de morrer, ele disse a alguém: “Escrevo não para me expressar, mas para preencher um vazio”. Quem tem coragem de entrar nesse vazio, na “falta”, na falha eterna que nos cega? João teve a obsessão de atingir algo além do tempo e do espaço, uma espécie de “sonho kantiano”, a vontade de ir além do “fenômeno”. Às vezes, nos dá a sensação de ter conseguido.

João passou a vida com uma dor de cabeça torturante — não era para menos. Que cabeça agüenta esse esforço permanente de ter doismicroscópios no lugar dos olhos, de flagrar o decorrer do tempo no alpendre, no canavial, o tempo corroendo as coisas como um vento invisível? (Van Gogh pintou o tempo se passando no espaço e se matou).

Como Proust, João Cabral também fez a geometria dos sentimentos, descrevendo a planta baixa das emoções, esquadrinhando-as como objetos concretos, de todos os lados, sem aspiração a transcendências “inspiradas”, sempre comparando matéria com matéria, mostrando que a mulher é igual a fruta, que a praia é o lençol na cama, que a bailarina espanhola é a égua e a cavaleira, que o rio tem dentes podres, que o cão não tem plumas, que a alma do miserável cassaco de engenho é feita de pano sujo de aniagem. João Cabral nem parece um artista; parece cientista, matemático, o que fortalece seu sopro lírico, domado, mas circulando como sangue dentro da pedra.

João virilizou muito a poesia, acabou com a sensação de que arte é frescura ou coisa “de veado”, como dizia meu pai, engenheiro, filho de poeta árabe. Tive um grande alívio quando ele me disse, uma vez, quando o entrevistei: “O mal que Fernando Pessoa fez à literatura éimenso. Aquela coisa derramada, caudalosa, criou uma multidão de poetastros que acreditam na inspiração metafísica”.

Eu, que rosnava covardemente pelos cantos porque não gostava de Pessoa, finalmente respirei. E João Cabral continuou: “Eu saio do poema suando, com picareta. Minha obra é motivo de angústia. O sujeito tem de viver no extremo de si mesmo. Eu vejo isso na tourada.

O bom toureiro é o que dá impressão ao público de que vai morrer”. A importância de João Cabral é imensa também nesse campo do que chamam de “poesia política, engajada” e outros termos insuficientes. Pela forma, pela recusa a idéias gerais, João Cabral fez a poesia mais profunda sobre o Brasil, a mais “política” também. A visão que sua poesia nos dá sobre a miséria do país não vem de conteúdos, de brados contra a injustiça ou de denúncias de tragédias.

Assim como a importância política de Brecht se fez muito mais pela inversão dos significantes da forma teatral, muito mais em “Baal” ou na “Selva das cidades” do que em suas peças didáticas, assim também João Cabral nos ensinou muito sobre o Brasil através de suas visões do vazio, movidas apenas por uma discretíssima compaixão. Na entrevista, Cabral critica Mario de Andrade: “Essa história de identidade nacional é invenção dele. Esse negócio de síntese do Brasil é bobagem.

Grande é Gilberto Freyre, que escreveu sobre o cotidiano da escravidão. As parcialidades é que iluminam”. Ele também disse, nesta entrevista, há 15 anos: “O Brasil está numa crise de parto. As coisas são sinistramente surpreendentes. A ditadura torturou, mas não regrediu o país. Agora, com a liberdade, está parado.

Dá para entender? Se puser o homem mais genial do mundo no governo, os estamentos burocráticos e os políticos reacionários não deixam o país crescer...” João Cabral descreveu o Brasil em negativo. Ele não nos mostra a pobreza; ele mostra a riqueza que nos falta. Em sua poesia, pelo avesso, João nos mostrou tudo o que “não temos”.

João mostrou-nos o que poderia ser nossa língua (e não é). João Cabral nos mostrou o que o país está perdendo. Jovens, leiam João Cabral e salvem-se!

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