Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 07, 2006

Reinaldo Azevedo Governante bom é governante chato




"Precisamos de governantes chatos como Fortimbrás, não de cretinos animados como Hamlet. Precisamos de despachantes das instituições que façam prevalecer a lei a despeito de suas inclinações emocionais, não de quem sacrifique a legalidade sob o pretexto de praticar a igualdade"

Em política, como na vida, o irracionalismo, o discurso emocional, é a ante-sala do crime e da tragédia. Faça-se a leitura que se quiser de Hamlet, de Shakespeare, por exemplo, e uma constatação é inescapável: o príncipe era um idiota dado a faniquitos. Sua obsessão em denunciar o tio supostamente regicida ignora estratégias. Polônio, que tenta lhe incutir algum senso de razão, acaba assassinado acidentalmente pelo jovem estabanado. É o primeiro da carnificina promovida pelo justiceiro. Perseguido pelo fantasma do pai, põe fim a uma dinastia. Hamlet se deixava envenenar pelas palavras, pela imaginação, pela alegoria: quando quer denunciar o tio, recorre a uma peça de teatro. Consumada a desgraça, a Dinamarca será governada por Fortimbrás, o príncipe norueguês, avesso ao temperamento do primo doidivanas: é resoluto, maduro, realista e objetivo. Seu reinado não renderia tragédias. É provável que obedecesse a uma rotina burocrática, pastosa e quase cartorial.

Acervo pessoal
Getúlio Vargas: seu testamento e sua despedida são os "Evangelhos" da política como miséria da razão

Precisamos de governantes chatos como Fortimbrás, não de cretinos animados como Hamlet. Precisamos de despachantes das instituições que façam prevalecer a lei a despeito de suas inclinações emocionais, não de quem sacrifique a legalidade sob o pretexto de praticar a igualdade. Nota à margem: o intelectual italiano Norberto Bobbio contribuiu de forma notável para o pensamento liberal, mas escreveu uma bobagem pouco antes de morrer. Disse que a esquerda se ocupa da justiça social e que a direita defende o statu quo. Tolice. Esquerdista é quem aceita sacrificar a legalidade em nome de um entendimento particular de justiça social, e direitista – a direita legalista – é quem entende que só pode haver justiça onde há respeito à lei democraticamente votada.

Lula não é um adolescente esguio e delirante. Mas não dispensa a fantasia. Dia desses, num comício em Goiânia, confundindo o espírito de porco do messianismo com uma manifestação do Espírito Santo, disse que seu sangue e suas células já estavam no meio do povo. Fiz o sinal-da-cruz contra essa transubstanciação macabra. Ele perdeu o primeiro turno em Goiás: nem sempre os eleitores reconhecem o messias a tempo, como nos revela o plebiscito mais famoso da história... Em outra ocasião, o Cristo pagão assumiu as virtudes visionárias de Tiradentes: sugeriu que queriam enforcá-lo e esquartejá-lo. O homem tingia de sangue as suas cascatas alegóricas. Já se ofereceu como o pai complacente de todos os brasileiros, em especial dos petistas pegos em flagrante, os seus "meninos".

O irracionalismo costuma ser a rota de fuga dos políticos quando acossados pelos fatos. Quem for procurar um de seus primeiros discursos vai encontrar uma promessa solene: "Começamos a fazer o possível e, se der, vamos fazer até o impossível". Não seria difícil demonstrar que ele conseguiu inverter as prioridades... Depois de ouvir um dos delírios de Hamlet, o sempre ponderado Polônio observou: "É maluquice, mas tem método". O irracionalismo brasileiro começa a assumir características metódicas. Parte da academia e do jornalismo aplaudiu aquela fala insana – os mesmos que vaiavam FHC quando este dizia que a política realiza a "utopia do possível".

A resposta acéfala ao então presidente foi a seguinte: "Pô, mas o possível qualquer um faz; não precisa de um intelectual da Sorbonne". Na proposição está a saída para o Brasil – e para qualquer país – e, na estupidez da objeção, a sua tragédia. Imaginem se Hamlet tivesse se proposto a seguinte questão: "Como faço para depor o usurpador sem, no entanto, destruir o reino?". Se o fizesse, seria um sábio. Como não o fez, preferiu ser um santo, um mártir. Tanto é que pede a Horácio que não o siga na morte para narrar o que viu. Hamlet queria sair da vida para entrar na história, o bobalhão...

Durante ao menos duas décadas convivemos com uma expressão que era a chave de todos os enigmas: "vontade política". Bastava tê-la, e as águas se abririam. A Constituição de 1988, por exemplo, foi redigida sob a égide dessa impostura. O fato de haver uma história que a explique não fornece uma razão teórica que a justifique. A síntese prática da Carta poderia ser assim definida: com a "vontade política", garantem-se os direitos; com a retórica, os recursos. O texto constitucional incorporou o proselitismo contra a ditadura e pôs no papel um país ingovernável. E cá estamos nós, prestes a debater a terceira fase das reformas de um documento que ainda não tem 20 anos. E, ao fazê-lo, mais uma vez todo o estoque de irracionalismo será reciclado.

É esperar para ver: ai de quem tiver a ousadia de acusar o rombo na Previdência! A matemática será conjurada como uma trapaça ideológica das elites. A campanha eleitoral, arrastada pelo PT das páginas de política para as de polícia, está prestes a satanizar as privatizações do governo FHC. Pura tática de defesa. Servirá ao propósito de tentar ocultar crimes. Pterodáctilos ideológicos e oportunistas jogarão sobre as nossas cabeças expressões como "dilapidação do patrimônio público", "empresas vendidas a preço de banana", "entrega de nossas riquezas ao capital estrangeiro" etc. Pressionado pelas circunstâncias, lá vai o petismo regredir à palhoça mental em que se formou.

A política feita no Brasil como razão da miséria não poderia dar em outra coisa que não na miséria da razão. Há dois textos que servem de "Evangelho" a essa patacoada: a Carta-Testamento e a Carta de Despedida de Getúlio Vargas. Na primeira, acusa: "Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se novamente e se desencadeiam sobre mim". Na outra, o mesmo tom de quem se prepara para ser o cordeiro do povo que tira os pecados do mundo: "Deixo à sanha dos meus inimigos o legado da minha morte. Levo o pesar de não haver podido fazer, por este bom e generoso povo brasileiro e principalmente pelos mais necessitados, todo o bem que pretendia". Na primeira carta, o plágio não poderia ser mais explícito ou escandaloso: "Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte". Se pudesse, teria escolhido a crucificação.

Poucos sabem: Getúlio também tinha o seu Horácio, aquele encarregado por Hamlet de narrar os eventos macabros. A Carta-Testamento foi redigida por um ghost-writer: José Soares Maciel Filho, que costumava escrever os seus discursos. Cartas de suicidas são uma fala sem lugar. Vejam este trecho: "Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam (...)". Há, aí, ao mesmo tempo, gradação e antítese, duas figuras retóricas. Que vaidade leva um cadáver adiado a cuidar do estilo? Vai ver Maciel caprichou de tal sorte na farsa que Getúlio foi obrigado a se matar só por uma questão de coerência narrativa...

Assim como Hamlet tinha visões, os assassinos da razão na política, mesmo quando suicidas, têm ou fingem delírios. Alguns dos clichês apontados pelo pensador francês Raoul Girardet no livro Mitos e Mitologias Políticas são empregados por Getúlio à farta nas duas cartas: ele queria oferecer ao povo a Idade do Ouro, propunha-se a ser seu salvador, mas a conspiração dos inimigos e das forças estrangeiras, alheias aos interesses da pátria, o impediu e o empurrou para o sacrifício. Essa mentalidade, ante-sala dos desastres institucionais, está sendo reciclada no Brasil mais de cinco décadas depois. Acreditem em mim: em política, os chatos são menos perigosos do que os intensos.

O resto é barulho.

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