A menina sem estrela
O drama de Marcela de Jesus, que há
quase nove meses resiste a uma cruel
anomalia congênita: a ausência de cérebro
Adriana Dias Lopes
Fotos Celio Messias e Joel Silva/Folha Imagem
Marcela, hoje (à esq.) e recém-nascida, ao lado da mãe, Cacilda. Para a família, a sobrevivência é um milagre. Para a medicina, um caso raro, mas irreversível
Marcela de Jesus Galante Ferreira vai completar 9 meses na próxima semana sem jamais ter sentido o toque das mãos de sua mãe. A menina nunca ouviu um único som e não sabe o que é sentir dor física ou emocional. Desconhece o cheiro e o sabor de qualquer alimento. Sobrevive no mais absoluto vazio. Portadora de uma anomalia congênita cruel – anencefalia, ou ausência de cérebro –, a garotinha resiste graças às funções básicas mantidas pelo tronco encefálico, a única estrutura do sistema nervoso de que dispõe. Composto de fibras nervosas, o tronco encefálico garante os batimentos cardíacos, a respiração e alguns movimentos de sucção. Nada mais. Os bebês anencéfalos, em geral, não duram mais do que três semanas. Marcela é um caso raro na medicina.
Para a Igreja, os nove meses de sobrevida, ainda que vegetativa, são um milagre divino. Marcela foi, inclusive, o símbolo de uma passeata antiaborto organizada em São Paulo, em março passado, que reuniu 5.000 fiéis católicos, espíritas e evangélicos. Para a medicina, Marcela é apenas uma exceção. "É impossível prever quanto o corpo da garotinha vai resistir. Mas é certo que a sua deformidade é absolutamente letal e, contra ela, não há escapatória", diz o geneticista Thomaz Gollop, especialista em medicina fetal do Hospital Albert Einstein.
Os pais da menina, Cacilda e Dionísio, lavradores da minúscula Patrocínio Paulista, cidadezinha no interior de São Paulo, nunca haviam sequer ouvido falar de tal problema congênito. Foi durante um ultra-som de rotina, no quarto mês de gestação, que souberam da anomalia. Os médicos lhes deram uma semana para pensar sobre o que fazer – a permissão do aborto de anencéfalos não está prevista no Código Penal, mas a maioria dos juízes hoje concede alvarás para a interrupção desse tipo de gestação. "Entendi no ato o que eles queriam dizer com aquele tempo que me deram. Respondi que não precisava de nem um minuto a mais para saber que eu levaria a gravidez adiante", diz Cacilda. Com a resignação própria de católicos fervorosos, os pais decidiram acrescentar o "de Jesus" ao nome da filha. "A partir daquele momento, ela nunca mais foi minha. Foi entregue a Deus", diz a mãe. Desde o nascimento de Marcela, o pai só fica na cidade com a mulher aos domingos. Nos outros dias, a fim de poder arcar com o aumento das despesas, ele permanece na roça. As filhas mais velhas – Débora, de 18 anos, e Dirlene, de 15 – passam a metade da semana com Dionísio, ajudando a plantar milho, feijão e verduras. Cacilda parou de trabalhar e deixou de ir à missa aos domingos para cuidar do bebê. É ela quem controla a alimentação de Marcela por sonda. Também aprendeu a perceber o momento exato de colocá-la no concentrador de oxigênio, um aparelho elétrico em forma de capacete que aumenta a oferta de ar quando a criança tem dificuldade de respirar – e que fez a conta de luz da casa saltar de 30 para 200 reais por mês.
A família Ferreira age como se Marcela não fosse diferente dos outros bebês de sua idade. A menina está em dia com a carteira de vacinação do Ministério da Saúde. Toma ferro e vitaminas, como qualquer criança da mesma faixa etária. Apesar dos olhos cegos projetados para fora e de a parte superior da cabeça ser disforme, a garotinha tem fotos feitas pela família. Nelas, aparece usando um gorro, simplesmente. "Minha filha é muito carinhosa. As pessoas ficam tão encantadas com ela que não ligam para o formato de sua cabecinha", diz Cacilda. As reações esporádicas de Marcela aos afagos da mãe, como um meio sorriso que esboça vez por outra, são resultado de reflexos involuntários que não precisam necessariamente passar pelo cérebro.
Entrevista:O Estado inteligente
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