Assisti pela Rede Globo, tocado pela indignação, mas comovido e solidário, a entrevista dos pais de João Hélio, o meninozinho cruelmente assassinado no Rio de Janeiro. Vi, também, o retorno da tese reacionária, arcaica e brasileiríssima segundo a qual, quando se trata de lei, a pressa é inimiga da perfeição. Se tudo o que é legal e poderoso se reveste, como na antiga Roma, da imobilidade que tem como serviçais o protocolo do silêncio confundido com sabedoria e a liturgia lenta travestida de equilíbrio, não haverá como estabelecer uma sociedade igualitária no Brasil.
A recusa, a covardia e o medo de discutir os limites da responsabilidade criminal — que, como sabem os psicólogos, são, a partir de uma certa idade, sempre arbitrários — diante do corpo de um meninozinho destroçado por bandidos falam bem da impunidade como um valor neste país.
Estudante de sociedades humanas, sei que não há coletividade sem algum tipo de desvio, pecado, tabu ou crime. Só as abelhas não rompem regras, justamente porque não as têm. Mas sei também que, em todos os sistemas, há uma consciência aguda para o crime, a menos —- e é isso que me assusta — que a violação da norma seja ela própria um valor. O assalto a mão armada, o risco de ser queimado vivo quando se entra num ônibus é hoje, no Rio de Janeiro e em outras cidades brasileiras, algo tão corriqueiro que estamos prestes a essa velha distinção entre o normal e o patológico no que diz respeito à violência contra a propriedade e contra a vida em geral.
Para um sistema social consciente de sua iníqua distribuição de renda e que tenta corrigi-la apresentando aos seus cidadãos o exemplo tradicional da educação, da honestidade e do trabalho, mas que, simultaneamente, também adota formas anômalas de sucesso por meio do crime contra a propriedade e o cargo público (que vai do "rouba, mas faz"; ao "eu não sabia"; sem esquecer o "mas esse problema está resolvido..."), existe o sério risco de dissolução da fronteira entre o certo e o errado.
Ademais, há o risco de, em nome da pobreza e da iniqüidade social, justificar todos os crimes que, em tese, seriam "sociais". Se a sociedade é injusta pela raiz, onde está a legitimidade de prender e punir pessoas que, no limite, são vítimas dessa injustiça? Como punir o criminoso hediondo se ele é, em primeiro lugar, uma vitima da sociedade que seria mais injusta que ele?
Mas será que todo injustiçado vira necessariamente um criminoso? Para que lado desemboca a injustiça? Ela segue sempre na direção da brutalidade contra a pessoa humana ou um menino indefeso? Se pensarmos que a justiça social pode ser liquidada na ponta de uma arma e não por meio da regra da lei, para onde vai o ideal de democracia e de justiça social? Se o governo, por incompetência, mendacidade ou medo, entregar a justiça social aos "movimentos" e aos que se sentem injustiçados, deixando que eles façam a justiça que julgarem mais indicada para o seu caso, que tipo de sistema estaremos estimulando? Seria possível imaginar uma justiça sem limites, deixando intocado um sistema que abona uma polícia ineficiente e um quadro legal fundado no privilégio das vergonhosas proteções que distinguem a lei de quem com ela rompeu? Não seriam esses apêndices de privilégio legal os produtores de injustiça, de crime e de ilegalidade, justamente porque este país, que só tem governos voltados para o povo, assiste rotineiramente aos mais escabrosos escândalos envolvendo membros do governo serem premiados com a impunidade? Qual a relação entre limite e justiça? Entre compaixão e reparação moral? Entre o conforto do sofrimento indizível e a coerência moral e política reparadora para com as vítimas, cujo único pecado foi o de ter progredido na vida?
Enfim, que sociedade é essa que recusa punir e detesta estabelecer ou sequer discutir limites? Que acha certo e "normal" mudar a Constituição para dar mais poder ao governo, mas que toma como apressado, neurótico ou imoral discutir medidas para acabar com crimes hediondos como esse que vitimou o menino João Hélio? Por onde começar senão de modo radical, pela raiz? E a raiz aqui é a (maior)idade para a responsabilidade penal que, no Brasil, está incoerentemente desvinculada da maioridade política. Se o sujeito tem, aos 16 anos, o discernimento e a responsabilidade para escolher quem vai administrar o país, porque ele é singularizado quando comete um delito? Não seria esse um fator de aliciamento preferencial dos menores pelos bandidos? Não seria essa inocência presumida que se atribui à própria juventude uma dimensão ponderável da ausência de limites como uma ética e um valor?
Entrevista:O Estado inteligente
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