Nestes dias em que as chamadas 'flores do recesso' (no jargão da política, temas irrelevantes alçados às manchetes pela inatividade parlamentar) já estão murchas, duas falácias percorrem o Brasil do Oiapoque ao Marajó, ou melhor, do Chuí à Lagoa dos Patos, como diria 'nosso guia'. Uma tenta dar relevo institucional à anistia solicitada ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal (STF) pelo ex-deputado José Dirceu (PT-SP), cujo mandato foi cassado pelos colegas no ápice de um escândalo inadequadamente batizado de 'mensalão' e mais inadequadamente ainda expurgado do debate político e da memória popular. A segunda justifica tal pedido pela pretensa impropriedade da punição imposta e também pelos relevantes serviços prestados à democracia pátria pelo ex-chefe da Casa Civil e ex-presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), no qual milita o presidente da República.
Ao contrário do que proclamam os próceres contra e a favor e do que propaga o noticiário, esse assunto não é de interesse público. É, sim, um pleito meramente pessoal, restrito a seu protagonista e ao grupo de aliados, amigos e apadrinhados, que têm interesse direto nas fatias de poder que possam alcançar por intervenção dele. O fato de muitos sócios desse clube privado e exclusivo ocuparem postos de importância no topo de qualquer um dos três Poderes republicanos não dá a essa reivindicação foros de coisa pública, muito menos republicana. Não interessa também se ela é justa ou não. Este raciocínio não comporta juízo de valor, mas a plana constatação de que não chega a ultrapassar os muros que cercam os quintais das casas desse varão e de seu séquito.
José Dirceu foi processado politicamente, sim, mas na forma da lei: sua punição decorreu de longo, acalorado e divulgado processo, durante o qual os princípios elementares de defesa de seu direito de cidadão foram amplamente contemplados e obedecidos. Chegou a ser defendido, de forma denodada, embora inusual, por um aliado da importância do então presidente do STF, Nelson Jobim, que em sessão histórica, mas de triste memória, daquela corte abandonou o martelo do julgador para se abrigar na toga de defensor. No fim de tal processo, foi condenado à pena máxima, não de morte, mas da catalepsia política, com a perda dos direitos eleitorais, cassados junto com o mandato parlamentar, que já estava por findar. Prova de que essa pena não é definitiva a fornece todo dia no Senado o alagoano Fernando Collor, que foi impedido de cumprir parte considerável do mandato presidencial para o qual fora eleito e, depois, de concorrer a eleições ao longo de um decênio, mas agora representa seu Estado no Senado da República. Ou seja: José Dirceu não é um cadáver político; no máximo, um urso que terá de hibernar por dois mandatos.
O apenado atribui a condenação à perseguição de desafetos. Não se lhe pode negar o direito de pensar assim. Embora a votação de sua sentença tenha sido feita num plenário composto por colegas de ofício mais propensos à proteção corporativista que à punição exemplar e para os quais os desejos do Poder Executivo, no qual havia exercido, até havia pouco, cargo de relevo, sempre tiveram peso considerável. Contra sua presunção é possível argüir que, se a decisão de seus pares foi de caráter político, deu correta prioridade ao interesse da instituição, cuja imagem se encontrava arruinada por crimes escabrosos de má gestão, dos quais foi apontado como mandante. Se não se produziu até hoje prova na Justiça comum contra ele, o mesmo pode dizer Collor, que ele próprio, na Câmara, ajudou a derrubar da Presidência, mas nunca foi condenado pela Justiça a cumprir pena. Não há uma instituição no Estado de Direito em vigência neste país que possa ter sofrido alguma interferência maléfica da decisão em pauta. Portanto, seu pleito pode até ser justo, mas é exclusivamente dele.
Da mesma forma que nenhuma instituição republicana foi ferida pela decisão da Câmara, contestada por José Dirceu, padece de qualquer relação com os fatos históricos o argumento de que ele merece o perdão pelos relevantes serviços prestados à luta pela democracia conquistada pela sociedade brasileira. No dia em que foi julgado, ele se alçou, na peroração de defesa, à condição paulina de 'combatente do bom combate'. Faltaram ao então líder do PSDB - sempre próximo do microfone de apartes, mas aparentemente pouco habilitado para usá-lo -, Alberto Goldman (SP), informações suficientes para lhe perguntar sobre o combate a que se referia o réu. Não há registro histórico de ter ele participado de qualquer enfrentamento. Ao contrário de sua sucessora na Casa Civil, Dilma Roussef, que realmente arriscou a vida: ele não pode, a rigor, reivindicar a condição de 'companheiro de armas' dela, como o fez na transmissão do cargo.
Quanto à qualidade desse combate, é possível dizer que ele foi bom por ter sido contra a ditadura militar de direita, que sufocava as liberdades democráticas e torturava seus inimigos. É, contudo, controverso venerá-lo só por isso como herói da democracia. Pois, ainda que houvesse empunhado armas para combater a tirania, como alega que fez, mas tendo apenas sido treinado em Cuba - e não se sabe como terá usado tal aprendizado esfregando a barriga no balcão da loja da família da mulher no interior do Paraná -, não o teria feito para implantar no País o Estado de Direito. Mas, sim, uma ditadura de sinal oposto à militar, de direita. Segundo mostrou a experiência histórica de Stalin, Mao e Fidel Castro, sobre cujo dólmã ele derramou copioso pranto nostálgico, porém, nada indica que esta seja necessariamente menos brutal ou mais condescendente com os contraditórios - aos quais ele agora apela, com legitimidade, para voltar à cena antes de cumprir a pena inteira.