Enfim, um santo brasileiro
Nascido no interior de São Paulo, o frade
franciscano será canonizado no Brasil em
missa celebrada pelo papa Bento XVI
Camila Pereira
Roberto Setton |
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Desde o dia em que frei Antonio de Sant'anna Galvão morreu, em 1822, toda a Capitania de São Paulo, onde ele viveu sessenta dos seus 83 anos de vida, sabia que um santo havia surgido. Ao seu velório, no Mosteiro da Luz, compareceram mais de 3.000 pessoas, num tempo em que a população da cidade não passava de 25.000 habitantes. Fiéis recortaram-lhe pedaços da batina e retiraram pequenas pedras de seu túmulo para mergulhá-las na água que dariam aos doentes na esperança de que fossem curados. Em vida, diversos milagres foram atribuídos ao religioso, que, com sua única batina, costumava percorrer a pé os vilarejos do interior de São Paulo, pregando para os pobres. Por onde ele passava, multidões acorriam. No próximo dia 11 de maio, a santidade de frei Galvão, há quase 200 anos anunciada, será oficialmente reconhecida. Em missa a ser celebrada pelo papa Bento XVI no Campo de Marte, em São Paulo, o frade franciscano vai se tornar o primeiro santo genuinamente brasileiro.
Já não era sem tempo. Com o maior número de católicos do mundo, o Brasil até hoje não tinha um único santo nativo nos altares. Madre Paulina, canonizada em 2002, embora tenha vivido a maior parte de sua vida nos estados brasileiros de Santa Catarina e São Paulo, nasceu na Itália. Frei Galvão nunca saiu do Brasil. Criado em uma família rica e poderosa – o pai foi capitão-mor de Guaratinguetá, no interior de São Paulo –, ele deixou a casa paterna aos 13 anos para estudar com os jesuítas na Bahia. Aos 21, ingressou na Ordem dos Franciscanos, no Rio de Janeiro. Ordenado sacerdote, veio para São Paulo. Com incomum (naquele tempo) 1,90 metro de altura e forte compleição muscular, o religioso era descrito como um homem excepcionalmente bonito. "Lendo as poucas correspondências que ele deixou, é possível perceber também que era terno e que tratava a todos com grande delicadeza", conta a freira Célia Cadorin, da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição. A religiosa dedicou os últimos dezesseis anos à missão de transformar frei Galvão em santo. Em 1991, ela foi nomeada pelo então cardeal dom Paulo Evaristo Arns postuladora da causa do frade franciscano. Espécie de advogado do candidato à santidade, o postulador tem papel fundamental num processo de santificação. É a ele que cabe providenciar documentos e testemunhos que, enviados a Roma, deverão provar que o candidato preenche os dois principais requisitos exigidos pelo Vaticano para ser alçado ao panteão dos santos católicos: ter levado uma vida virtuosa e realizado, ao menos, dois milagres – reconhecidos pela Igreja e pela ciência. A tarefa de comprovar a realização de um milagre é a etapa mais difícil de um processo de canonização.
ERG |
MIRACULADA Sandra de Almeida e seu filho Enzo, nascido depois de uma gestação difícil: milagre reconhecido pela Igreja e pela ciência |
No início da era cristã, diante da perseguição religiosa e da profusão de mártires, bastava a aclamação do povo para que um morto fosse feito santo. Foi só no século XII que as canonizações passaram a ter de ser proclamadas pelo papa. A exigência de comprovação dos milagres, com o aval da ciência, só surgiu no século XVI, depois do Concílio do Trento. Ao longo do tempo, a Igreja foi tornando o processo mais e mais rigoroso. Hoje, um milagre só pode ser considerado como tal depois de passar por uma minuciosa investigação que inclui, além dos depoimentos de familiares e amigos do suposto beneficiário da graça, estudos médicos e exames de nomes complicados, como uma histerossalpingografia, por exemplo. Um exame como esse, que avalia a anatomia de um útero por meio de contrastes radiológicos, fez parte do processo de santificação de frei Galvão. Para selecionar os milagres que seriam submetidos à apreciação do Vaticano, irmã Célia analisou mais de 4.500 relatos de supostas graças enviados por devotos do religioso.
Um dos casos que mais lhe chamaram a atenção foi o da paulista Sandra Grossi de Almeida, hoje com 37 anos. Havia muito tempo, Sandra sonhava em ser mãe, mas, por causa de uma má-formação do útero, já havia sofrido dois abortos espontâneos, um deles de gêmeos. Quando, em 1999, engravidou pela terceira vez, os médicos a avisaram de que o feto provavelmente não passaria do quinto mês. Desde o início da gestação, Sandra começou a ter sangramentos. Diante da perspectiva de mais uma perda, desesperou-se – até que uma amiga levou a ela três minúsculos pedacinhos de papel enrolados em forma de cânula. Eram as pílulas de frei Galvão. Hoje reputadas como milagrosas, elas surgiram entre 1785 e 1788. Nessa ocasião, reza a tradição católica, o frade franciscano foi procurado por dois homens que lhe pediram que intercedesse pela saúde de seus familiares: o marido de uma gestante com problemas no parto e o pai de um menino que sofria de uma doença renal. Como não podia ir até os doentes, o franciscano resolveu escrever uma oração em um pedaço de papel, que cortou em três pequenos pedaços e ofereceu aos homens, recomendando que fizessem os doentes tomá-los como remédio. Tanto a gestante como o rapaz curaram-se, de acordo com relatos do período. Desde então, a fama das pílulas se espalhou pelo Brasil. Até hoje, no Mosteiro da Luz, treze freiras trabalham na sua confecção: enrolam uma tira de papel de arroz em que está impressa dezessete vezes a oração escrita pelo religioso – uma prece em latim dirigida à Virgem Maria – e depois a cortam em catorze pedaços para deixar as pílulas em formato de microcânulas. Todos os dias, pela manhã, formam-se, diante do mosteiro, enormes filas de pessoas em busca do remédio supostamente milagroso. Diariamente, as irmãs produzem e distribuem mais de 5 000 pílulas aos fiéis.
Roberto Setton |
OS FAMILIARES Theresa e Tom Maia, descendentes de irmãos de frei Galvão, com a filha e netos: guardiães das relíquias do santo |
No caso de Sandra, o sangramento cessou no dia seguinte à ingestão das pílulas – e Enzo, hoje com 7 anos, é um menino saudável. Depois de analisar uma bateria de exames de Sandra, a comissão médica da Congregação para as Causas dos Santos, composta de cinco profissionais, concluiu que um útero com as características do dela (chamado bicorne, por se dividir em duas cavidades, ambas muito pequenas) não ofereceria espaço suficiente para que um feto crescesse. Por unanimidade, atestou que a ciência não tinha explicação para o fato de Sandra ter concluído a gestação. Em 1998, o Vaticano já havia chancelado um primeiro milagre do frei: a cura da menina Daniela Cristina da Silva, que, em 1990, fora desenganada pelos médicos por causa de uma hepatite aguda. O reconhecimento da primeira graça elevou o franciscano à categoria de beato. Para alcançar a santidade, no entanto, era necessária a comprovação de um segundo milagre. O do nascimento de Enzo foi reconhecido pelo Vaticano em dezembro do ano passado.
A dificuldade de ter um milagre reconhecido não se limita à obtenção de exames e análises médicas. Segundo os preceitos da Igreja, os milagres, tanto o da fase da beatificação quanto o da santificação, precisam ser "instantâneos, duradouros, perfeitos e de autoria indubitável". Para garantir o cumprimento desse último requisito, a irmã Célia enfrentou uma dificuldade um tanto prosaica: como, em São Paulo, um dos maiores centros de devoção a frei Galvão, a Capela do Mosteiro da Luz, fica a um quarteirão da Igreja de Santo Expedito, muitos dos fiéis que iam solicitar a ajuda do franciscano acabavam aproveitando a viagem para reforçar o pedido no santo vizinho. Dessa forma, quando alcançavam uma graça, não podiam dizer com certeza quem era o seu autor. "Tive de abrir mão de bons milagres por causa disso", conta a irmã Célia.
Fotos Roberto Setton | |
PÍLULAS MILAGROSAS A irmã Claudia Hodecker, uma das treze freiras enclausuradas do Mosteiro da Luz que confeccionam as pílulas de frei Galvão (à direita). Mais de 5 000 são distribuídas diariamente aos fiéis que se enfileiram diante do mosteiro |
Um processo de canonização sai caro. Só para confirmar o segundo milagre de frei Galvão, a freira calcula ter gastado 55.000 euros, entre viagens a Roma, exames, consultas médicas e tradução de documentos. O dinheiro veio da doação de fiéis e foi arrecadado, principalmente, pelo Mosteiro da Luz – idealizado e desenhado pelo religioso, que ajudou a erguê-lo junto com escravos. A colher de pedreiro que ele utilizou nas obras está exposta lá. Também na casa de Guaratinguetá em que o franciscano nasceu e passou a infância há relíquias do novo santo: objetos pessoais, pedaços de tecido de sua batina e imagens doadas por devotos. A historiadora Theresa Maia, sexta geração de um dos nove irmãos do franciscano, é responsável pela preservação do acervo e da casa, ao lado do marido, Tom Maia – ele também descendente de um dos irmãos de frei Galvão – e da filha Regina Maia. O número de visitas à casa praticamente dobrou desde a aprovação do segundo milagre do antigo morador. Agora, espera-se que a romaria aumente especialmente no dia 25 de outubro, data dedicada ao religioso no calendário litúrgico. Embora intitulado oficialmente "patrono da construção civil", por seu trabalho nas obras do Mosteiro da Luz e no Mosteiro de Sorocaba, religiosos acreditam que o futuro santo deve se firmar mesmo como padroeiro das gestantes. "O milagre que deu origem às pílulas, assim como o que o levou à santificação, está relacionado a gestações difíceis", diz a irmã Claudia Hodecker, do Mosteiro da Luz. "Por causa disso, a maioria das cartas que chegam a nós, com pedidos para frei Galvão, vem de grávidas."
Roberto Setton |
DEVOÇÃO Túmulo do franciscano na capela do Mosteiro da Luz: a maioria dos pedidos vem de gestantes |
Por que países como o Japão, com pouca tradição católica, têm santos às dezenas enquanto o Brasil, com 125 milhões de seguidores da religião, passou tanto tempo sem ter um santo próprio? A resposta é: sobretudo, por culpa do próprio Brasil. Até recentemente, não havia no país religiosos com experiência suficiente para atuar nas causas de canonização. "Os processos costumavam ser tratados de maneira quase informal. Padres de pequenas paróquias cuidavam das causas enquanto assumiam diversas outras funções", diz o padre Cesar Augusto dos Santos, vice-postulador da causa de Anchieta. Irmã Célia, hoje a principal especialista brasileira nessa área, foi a primeira postuladora que conferiu maior profissionalismo ao processo. Além da falta de traquejo nos meandros do Vaticano, outro fator, esse alheio ao país, atrasou o surgimento do primeiro santo nacional. Até o fim dos anos 80, não havia, da parte da Igreja Católica, nenhum empenho em aumentar a população de canonizados no mundo. Essa situação mudou a partir do pontificado de João Paulo II. Preocupado com a crescente expansão de outras religiões no mundo, ele diminuiu as exigências para as canonizações e, em 26 anos de papado, fez mais santos do que todos os seus antecessores juntos. Somou nada menos do que 482 novos canonizados aos 302 proclamados por seus antecessores. "Quanto mais familiar e palpável a relação com o sagrado, mais fácil fica para o homem comum viver a religião. Nesse sentido, a existência dos santos fortalece os laços dos fiéis com a Igreja Católica", afirma o sociólogo Lísias Negrão, da Universidade de São Paulo, especialista em religiosidade popular.
A importância dos santos, evidentemente, não se limita à sua função, digamos, política na Igreja. Santos servem para aproximar o homem de Deus. A espécie de cumplicidade que os fiéis estabelecem com eles diminui o assombro diante da superioridade divina e confere humanidade à transcendência. A grandeza de sua vida diminui a pequenez dos homens. Agora, nesse altar de vidas grandiosas, estará também o brasileiro frei Galvão.
COMO SE FAZ UM SANTO
Duas estradas podem levar à santidade: a do martírio e a das virtudes. Ao fim do processo que pode durar até mais de um século, a palavra final é dada pelo papa, após consultas a bispos e cardeais. Ao lado, o passo-a-passo de uma canonização
Fontes: irmã Célia Cadorin e padre Cesar Augusto dos Santos |
O CASO ANCHIETA
À espera de um milagre. Essa é a situação do processo de canonização do padre José de Anchieta. Embora nascido nas Ilhas Canárias, pertencentes à Espanha, o religioso é celebrado como o Apóstolo do Brasil, país onde viveu a maior parte de sua vida. No ano de 1602, decorridos exatos cinco anos de sua morte, a Companhia de Jesus, sua ordem religiosa, abriu o processo para levá-lo à santidade. Quatro séculos depois, Anchieta ainda espera na fila a sua vez. Tamanha demora se deve, em parte, ao fato de que, no período em que os jesuítas foram expulsos do Brasil e perseguidos no mundo inteiro, seu processo foi suspenso – e ficou parado por 124 anos. Atualmente, no entanto, são problemas de outra natureza que vêm emperrando o processo de Anchieta. A expectativa era que, beatificado em 1980, ele se tornasse o primeiro santo do Brasil. Ocorre que, desde então, o aguardado milagre, necessário para levar a cabo todo o processo de canonização, não acontece.
A Associação Pró-Canonização de Anchieta, em São Paulo, trabalha há cinco anos na divulgação da causa, estimulando os devotos a pedir a intercessão do beato e, depois, a narrar as eventuais graças alcançadas com a sua ajuda. Até agora, porém, nenhuma história se encaixou nas exigências do Vaticano. Não que haja má vontade por parte de Roma. Pelo contrário. No processo de beatificação do padre, também não havia um milagre documentado. Mesmo assim, Anchieta foi elevado à categoria que antecede a dos santos. O papa considerou que o padre, que sempre teve fama de milagreiro, merecia o título pelo "conjunto da obra". Agora, para a canonização, nada indica que Anchieta vá ter a mesma facilidade.