Processos contra políticos acusados de
desviar recursos podem ser anulados
Ricardo Brito
O Supremo Tribunal Federal vai definir nesta semana o destino de milhares de processos que tramitam contra administradores públicos envolvidos em corrupção e desvio de dinheiro. Estarão atentos ao veredicto figuras como o ex-ministro José Dirceu, o deputado Paulo Maluf, o senador Joaquim Roriz, o ex-presidente Fernando Collor, o ex-governador Orestes Quércia e centenas de prefeitos e ex-prefeitos acusados de surrupiar os cofres municipais. O STF vai decidir se autoridades que exercem cargos de natureza política poderão continuar sendo processadas por crime de improbidade administrativa -- uma figura jurídica criada em 1992 para dar celeridade à Justiça e permitir que administradores públicos corruptos fossem alcançados com mais facilidade. A questão é polêmica e o julgamento já se estende por quatro anos. A tendência é que os juízes decidam que a lei não pode ser aplicada contra agentes políticos. Ou seja: presidentes da República, ministros, governadores e prefeitos que se enredam em maracutaias não seriam mais atingidos pela lei. A conseqüência imediata da decisão seria a anulação de cerca de 10.000 processos de improbidade que existem hoje contra autoridades e ex-autoridades, incluindo aí aqueles que caminham para a punição dos personagens já citados.
"O Supremo está decretando a impunidade dos políticos deste país", adverte o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, Rodrigo Collaço. A questão já está matematicamente decidida. Dos onze ministros do Supremo, seis já votaram contra a aplicação da Lei de Improbidade aos políticos. Apenas um foi a favor, e faltam quatro votos. Se todos os ministros que não se manifestaram se posicionarem contra a medida, ainda assim o placar seria favorável à proibição. A única alternativa para mudar o resultado é se um dos ministros reformar o voto, o que é normal, embora não muito freqüente. Se confirmada, além de funcionar como indulto a quem desviou dinheiro público, a decisão do Supremo ainda vai dificultar a abertura de processo contra autoridades, o que pode servir como um convite à corrupção. A Lei de Improbidade tem a virtude de permitir que um procurador da República de primeira instância ingresse com uma ação contra autoridades para reaver dinheiro público desviado, sem necessidade de autorização política ou prerrogativa de foro. Além disso, se condenada, a autoridade, além de ressarcir a quantia desviada, ainda pode perder os direitos políticos por até dez anos. "Se nem o rigor da lei inibiu as fraudes, imagine o que vai acontecer agora com essa quase-imunidade que está se dando aos políticos", diz José Carlos Cosenzo, presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público.
A discussão sobre a aplicação da Lei de Improbidade começou com uma reclamação do ex-ministro Ronaldo Sardenberg, condenado a devolver 20.000 reais à União por ter usado, em 1998, um avião oficial para fazer turismo na ilha de Fernando de Noronha. Sardenberg recorreu ao STF alegando que, como ministro, não poderia ser acionado por improbidade. Sem a Lei de Improbidade, o ex-ministro só poderia ser processado com autorização do Congresso Nacional e, se essa autorização fosse concedida, ele ainda teria direito a foro privilegiado no Supremo Tribunal Federal. O seu crime não seria mais de improbidade administrativa, mas de responsabilidade. Nesse caso, muito provavelmente, já teria caído no esquecimento e o dinheiro gasto ilegalmente em turismo jamais seria devolvido. É esse caminho mais difícil para apanhar um mau administrador que deverá voltar a ser percorrido se a decisão do STF se confirmar. "A história da ação de improbidade é a história de improbidades", disse o ministro Gilmar Mendes, do STF, que votou a favor da tese defendida por Sardenberg. O que ele quis dizer é que os procuradores da República usam a lei de maneira abusiva. O próprio Mendes responde a duas acusações por improbidade do período em que era companheiro de Sardenberg no governo de Fernando Henrique Cardoso.
ANISTIA JURÍDICA A anulação de cerca de 10 000 processos de improbidade administrativa evitará que uma horda de políticos preste contas à Justiça. Abaixo, alguns exemplos
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AVANÇOS CONTRA A MOROSIDADE
Andre Dusek/AE |
Sessão do STF: agora, com súmula vinculante e "repercussão geral" |
Entre tantas más notícias vindas do Judiciário, há um alento. A partir do mês que vem, a Justiça brasileira dará um passo importante na resolução de um dos seus maiores problemas: a lentidão na tramitação dos processos no Supremo Tribunal Federal (STF), que se acumulam aos milhares sobre as mesas dos ministros. Entrará em vigor a súmula vinculante, mecanismo que prevê que, toda vez que o STF se pronunciar sobre um tema objeto de diversas ações, a decisão passará a ser aplicada automaticamente nos tribunais inferiores. Um exemplo: já deram entrada na Justiça cerca de 600 000 processos de trabalhadores que reclamam perdas no FGTS causadas por sucessivos planos econômicos do governo federal. Uma vez que os ministros do Supremo se pronunciem sobre o tema, estará criada uma súmula, que deverá ser respeitada pelos juízes de primeira e de segunda instância. Na prática, isso significa que o STF não será mais o desaguadouro de uma enxurrada de processos de teor semelhante. No ano passado, chegaram ao Supremo 116 000 novas ações. Estima-se que, com a adoção da súmula, a média anual baixará para metade desse número. Na Suprema Corte americana, a média é de apenas 8 000 processos por ano.
A lei que cria a súmula vinculante tramitava no Congresso desde 1963, mas só no fim do ano passado foi aprovada e sancionada pelo presidente Lula. Outro mecanismo, o da "repercussão geral", entrou em vigor neste mês, também por sanção presidencial. Por esse instrumento, os ministros do STF escolherão os processos que irão julgar, recusando ações que não tenham interesse coletivo nem relevância social ou econômica. Parece incrível, mas, até a edição dessa lei, os ministros eram obrigados a julgar casos como brigas entre vizinhos. Bastava alguma das partes alegar a violação de algum direito constitucional para que a ação chegasse ao Supremo. Juntos, os dois instrumentos poderão desafogar o Judiciário e, conseqüentemente, trazer benefícios a outros setores. "Os longos processos têm forte impacto na vida financeira das empresas. Uma vez que as decisões da Justiça passem a ser mais ágeis, esse custo será bem menor", avalia o advogado Ricardo Azevedo Sette, especialista em direito comercial. Hoje, o tempo médio de uma sentença até a decisão em última instância é de doze anos.
Marcelo Carneiro