A tragédia do menino João Hélio tem deflagrado toda sorte de debates renovadores do papel de instituições e pessoas dentro de um Brasil democrático.
Pelo que tenho visto até este carnaval que termina oficialmente nesta Quarta-Feira de Cinzas, mas que a cada dia amplia as suas práticas de trocar de lugar, as discussões são sintomáticas de como concebemos a lei (e, com ela, aquilo que se classifica como jurídico ou constitucional) e, num plano mais profundo, as nossas dificuldades de lidar com as relações entre os casos concretos e as normas que, sendo gerais e universais, valeriam para todos.
“Amanhã será um outro dia” é a frase final do dramalhão cinemático americano “E o vento levou”. Quando vi o filme, não sabia que a síndrome do “deixa ficar para ver como é que fica” era um princípio da vida política do país. Um princípio encravado no poder à brasileira e nele tão enraizado que, em tese, ele não teria afinidade com bandeiras políticas específicas, embora saibamos que é invocado com mais freqüência pelos que estão longe dos cemitérios, do que pelos que sofrem a perda de seus entes queridos.
A pressa neurótica é, como sabe quem vira ministro, inimiga da perfeição.
E, digo eu, de qualquer intervenção corajosa e honesta. Nossa concepção de poder cujo caráter é profundamente antiigualitário, rejeita as medidas pontuais, preferindo — insisto — a clássica imobilidade e a lentidão gradualista (já em curso) que sempre estiveram ligadas às formas mais arcaicas de mando. Em geral e dependendo dos implicados, preferimos ficar com a lentidão dos desfiles carnavalescos que inibe decisões; do que reagir batendo de frente com as causas do evento indigno e desumano. Por isso, estamos todos fartos de ouvir que “o problema é muito complexo” como uma justificativa para não se intervir em coisa alguma, mesmo quando se trata de um evento rigorosamente inclassificável, algo que — pelo inusitado das circunstâncias e pela sua quota de covardia e cruel insensibilidade — escapa do merecimento humano.
Entre nós, a tradição romana leva a imaginar que, no papel, a lei é veloz e capaz de resolver todos os crimes; mas ela é lenta, senão imóvel, quando se trata de qualquer caso particular, sobretudo se a ocorrência envolve uma pessoa capaz de lançar mão da contralegislação do “você sabe com quem está falando?”, prática inscrita nos elos do parentesco e da amizade. No Brasil, como estamos testemunhando, o caso particular não aperfeiçoa a lei. Pelo contrário, ele sempre abre um espaço para a exceção que impede punir o criminoso. Por isso, o processo começa sempre pequeno e termina com um carnaval de dados, investigações e acareações cujo resultado é o adiamento, o perdão e a pura e simples anulação, justamente pela ausência enciclopédica de provas! Pela lei, todo criminoso vai para a prisão, MAS se for primário, doutor, deputado, juiz, menor, tiver curso superior, etc., etc., etc... tem DIREITO e isso e aquilo, de tal modo que tudo se encaminha para um nivelamento de todos os desvios. Esse é o espírito da lei de uma sociedade desenhada para punir sempre pessoas sem eira nem beira, livrar os mais ou menos e tornar acima de qualquer suspeita os poderosos.
Daí resulta uma proverbial e insuportável impunidade. Impunidade marcada não pela ausência de leis, mas pelas suas exceções, seus adendos e parágrafos que, aliados a quem comete o crime, deles tiram o caráter universal e igualitário, fazendo com que os nossos aloprados escapem, mas — e esse ponto é crítico — possamos prender os deles! Ver as vítimas como se fossem nossos próprios filhos, como convida dramaticamente a mãe de João Hélio, é o profundo apelo do coração que personaliza o mundo, contra a nossa tendência de tudo abstrair e generalizar. Contra essa máquina de promover uma cruel e rotineira indiferença que, a partir de cada drama, alimenta uma vergonhosa estatística criminal. É preciso compreender que a paralisia transforma crimes hediondos em rotinas, tornando impossível a reparação legal. Para agir, é necessário colocar-se no lugar do outro, tomando a vitima como uma pessoa igual a nós. Só esse exercício de profunda identificação produz a medida apropriada para AQUELE caso particular. Não se trata de tomar partido contra o “outro” (o menor injustiçado pelo sistema, o inimigo político, o político ladrão ou o criminoso comum); mas de agir em harmonia com a dignidade e a honra — a favor de nossa humanidade.
A humanização da sociedade ocorre pelo diálogo entre processos impessoais e casos particulares. É o singular e o local que ajudam a legitimar, prevenir, corrigir, balizar e equilibrar o universal e o global. Um pecado e um crime são sempre particulares e horripilantes na sua nitidez, vileza, crueldade ou ausência de sensatez; no plano geral, porém, são simplesmente a abstrata quebra de um mandamento.
Os limites imprescindíveis em qualquer sociedade democrática passam pela lei geral e também pela consideração de cada caso em particular que conduz ao limite, ao que somos (e não queremos ser) e à reparação legal inibidora da vingança e do ressentimento.
É nessa difícil dialética que se encontra a justiça democrática que, dizem, sustenta a nossa confiança e valeria para todo
Entrevista:O Estado inteligente
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