Artigo |
O Estado de S. Paulo |
22/2/2007 |
“Os programas nucleares da Coréia do Norte contribuíram para empobrecer aquele país. Eles não compram prestígio ou influência, apenas bastante isolamento.” O diagnóstico, de Christopher Hill, o negociador americano do acordo de desnuclearização da Coréia do Norte, só contém a parte da verdade que não interessa ao ditador Kim Jong-il. O seu regime jamais se preocupou com a tragédia que vitima os norte-coreanos e não busca prestígio ou influência, mas apenas a preservação do próprio poder. A bomba atômica comprou isso: o acordo da semana passada assegura amplos suprimentos internacionais de energia para o país e a normalização das relações diplomáticas com os EUA e a Coréia do Sul. À mesa da grande barganha, em Pequim, se sentaram representantes dos EUA, da China, do Japão, da Rússia e das duas Coréias. Os formalistas saudaram o resultado como prova da eficiência do multilateralismo, interditado em outros lugares desde o 11 de setembro de 2001. Mas, de fato, o acordo repousa sobre a convergência de interesses geopolíticos vitais da China e dos EUA. A nuclearização da Coréia do Norte tem o potencial de dissolver o delicado equilíbrio de poder no Extremo Oriente. O Japão convive com uma China nuclear pois a sua segurança é garantida pelo “guarda-chuva nuclear” americano, cuja representação simbólica está corporificada nas tropas dos EUA estacionadas em território japonês. A garantia não se aplica, contudo, à ameaça posta pelo regime irresponsável de Kim Jong-il, que tende a empurrar o Japão no rumo sem volta da construção de um arsenal nuclear dissuasivo. Essa eventualidade é intolerável para a China, que experimentou a dor e a humilhação da ocupação japonesa. Pequim conhece bem seus interesses. A continuidade do seu projeto de desenvolvimento depende da estabilidade da ordem econômica mundial e da ordem geopolítica no Extremo Oriente. Os chineses precisam de um Japão desnuclearizado e, portanto, indiretamente, da presença de forças americanas no arquipélago japonês e no sul da Península Coreana. Eles têm todos os incentivos para impor limites à escalada da Coréia do Norte. Simultaneamente, pretendem preservar da destruição o regime de Kim Jong-il, que surgiu da costela do maoísmo. Sob o despotismo sanguinário de Mao Tsé-tung, a China orientou-se por um programa de superpotência que tudo subordinava às prioridades da indústria bélica. Logo após a tomada do poder, Mao passou a pressionar a URSS a transferir fábricas e tecnologias de armas modernas e, diante das hesitações de Stalin, provocou a deflagração da Guerra da Coréia (1950-53). O “Grande Timoneiro” instou o temeroso Kim Il-sung, pai de Kim Jong-il, a invadir a Coréia do Sul e lhe prometeu que tropas chinesas participariam do eventual confronto com os americanos. A guerra coreana, na qual foram sacrificados 150 mil soldados chineses, quebrou as resistências soviéticas a armar a China. Nem isso transformou a Coréia do Norte num protetorado chinês. Kim Il-sung equilibrou-se entre a URSS e a China, explorando o cisma no bloco comunista e, com o fim da guerra fria, seu filho conseguiu conservar alguma autonomia ante Pequim. A narrativa oficial da Guerra da Coréia fabricada pelo regime norte-coreano praticamente não menciona a participação decisiva da China e o memorial aos soldados chineses em Pyongyang é zona proibida para visitantes coreanos. A China contemporânea, reinventada pelos líderes comunistas perseguidos na Revolução Cultural (1969-76), não renunciou totalmente à herança maoísta. Os crimes pavorosos de Mao jamais foram expostos à nação e a figura do tirano continua a ser reverenciada ritualmente em todo o país. Por outro lado, a economia de campo de concentração foi suprimida e o programa de superpotência conheceu uma significativa reinterpretação. Pequim persegue obstinadamente a condição de potência global, mas compreende que, no fim das contas, o poder militar só se pode amparar no desenvolvimento industrial e tecnológico do país. Esse é o fundamento da parceria estratégica que mantém com os EUA. Do ponto de vista de Pequim, a Coréia do Norte representa, ao mesmo tempo, uma ameaça à estabilidade regional e um ativo de política externa. Aos chineses não interessa uma nova guerra na Península Coreana, com o inevitável corolário da nuclearização japonesa. Mas eles tampouco estão dispostos a sacrificar a ditadura de Kim Il-sung, pois isso significaria desistir de parte ponderável da sua própria influência no xadrez diplomático do Extremo Oriente. O acordo costurado em Pequim atende plenamente aos interesses chineses, mas acirra as divergências que fraturam o círculo de George W. Bush. A secretária de Estado Condoleezza Rice, exprimindo a posição oficial, o interpretou como uma vitória diplomática que deve funcionar como “mensagem ao Irã”, enquanto o neoconservador John Bolton, ex-embaixador na ONU, o deplorou por supostamente representar um prêmio à ousadia nuclear norte-coreana. Os neoconservadores têm outra razão para criticar a barganha: eles enxergam a China como novo rival geopolítico global dos EUA e sabem que o apaziguamento provisório da Coréia do Norte obedece à lógica estratégica dos chineses. O parafuso coreano completou uma volta inteira. Nos tempos de Bill Clinton se firmou um acordo similar ao atual, que foi rompido pela Coréia do Norte e violentamente condenado pelos neoconservadores. Treze anos depois, à sombra do fracasso no Iraque, o governo Bush aceita um acordo ainda mais vantajoso para a Coréia do Norte e avança um novo passo na via da marginalização dos neoconservadores. Nos termos realistas da barganha, os EUA ajudarão a sustentar a mais sombria ditadura do planeta, provendo-lhe uma gaiola dourada e alimentando-a com remessas regulares de petróleo. Daqui em diante, como fazer guerras em nome da difusão mundial da liberdade? |
Entrevista:O Estado inteligente
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