O Brasil é um país aproximativo, costumava dizer o embaixador Gilberto Amado. A precisão, a pontualidade, a clareza não combinam com a índole nacional. Em compensação, sobra generosidade nos elogios, no gosto pela imprecisão e no juízo de valor sobre fatos e pessoas. Por aqui se costuma dizer que fulano está “empurrando com a barriga” ou que há não perigo de as coisas melhorarem. Indagado, o interlocutor garante que trabalha “mais ou menos 40 horas por semana”. Para confessar a fé, afirma ser “católico, mas não praticante”, concluindo a conversa com um “até logo” que quer dizer “até outro dia”. Por ser o território do tempo relativo, não é de admirar que o ano-novo só comece agora, depois da estafante folgança carnavalesca. O País tem usado suas estruturas de consolação para purgar as agruras do cotidiano. Mas comete o desatino de freqüentemente dar o dito pelo não dito e esconder suas tragédias sob o cobertor. Exemplo: a barbárie que vitimou o pequeno João Hélio, no Rio de Janeiro, parece ter entrado no rol dos feitos vistos e chorados e rapidamente arquivados no baú da memória.
Não há motivo para perplexidade. Esse é o preço pago por nossa curvilínea democracia, elogiada porque suas instituições funcionam, mesmo que exibam um passivo incomum em matéria de ineficiência. Não deve causar estranheza o fato de que, após 120 dias, o presidente reeleito pareça perdido, perambulando como um dândi na escuridão, prometendo mundos e fundos e até brandindo um ambicioso programa-símbolo para coroar o segundo mandato, desconsiderando que o marketing do primeiro criou um antivírus contra planos espetaculosos. Além disso, como tantas outras propostas, o PAC, com sua textura de improvisação, só obterá sucesso caso pague a fatura franciscana cobrada pelo Congresso sob o lema inflexível “é dando que se recebe”. Ora, o atendimento das demandas de senadores e deputados implica acertos na composição ministerial. E assim se chega à ponta do iceberg: enquanto Lula não nomear o time do segundo mandato, tudo permanece na estaca zero. Como o ex-metalúrgico se gaba de conhecer a “alma brasileira”, dá tempo ao tempo, esperando uma ajudazinha da Providência, sem dar ouvidos à crítica de que o Ministério está desmotivado ou que a disputa entre partidos romperá a fortaleza da base governista.
Recorramos à lenda. O guerreiro que conseguisse desatar o nó que atava a canga à lança do carro de Górdio, rei da Frígia, dominaria a Ásia. Alexandre, o Grande, tinha duas opções: desatá-lo ou cortá-lo. Optou pela segunda. Como Lula não é guerreiro, não se parece com Alexandre e deve achar historinhas como essa “conversa mole pra boi dormir”, escolhe o método mais recorrente na trajetória dos governantes, o da tentativa e erro. Prefere desatar a cortar o nó que liga o apoio parlamentar ao Palácio do Planalto. Deve ter as suas razões. O exercício do poder, no Estado republicano, carece de maiorias legislativas, até porque nenhum partido consegue eleger mais que 20% dos representantes ao Parlamento. Para formar base majoritária o Executivo há de partilhar o poder entre aliados. Mas há uma condição pregada por Montesquieu: a partilha deve ser controlada, evitando-se perpetuidade de comandos. Luiz Inácio conta com 11 partidos na base, aos quais precisa ceder entre 15 e 20 Ministérios. Terá pela frente um dilema. Antes do PT, os governantes adotavam a partilha vertical, consistindo na entrega completa da pasta, no sistema “porteira fechada”, pelo qual o partido ganhava os cargos principais e secundários.
Lula mudou o costume, promovendo a partilha horizontal, deixando o filé dos Ministérios com o PT e os ossos com os aliados. Deu no mensalão. Vacinados, os partidos afiaram a faca das ambições na lâmina de promessas malsucedidas. E ainda há um grupo à espera de benefícios: os financiadores de campanha. Não desapareceram, apenas refluíram por temerem denúncias de favorecimento. Como a partilha vertical propicia domínio pleno de estruturas, vantagem na disputa por obras e discrição na distribuição dos serviços, o que reanima os financiadores, tudo indica que essa será a metodologia para formar o Maxistério. Maxistério? A palavra inexiste, mas podemos aceitar o neologismo em contraponto a uma organização enxuta, que a fonética de “Ministério” sugere. Nesse ponto, convém aduzir que o governo Lula é o mais generoso da História em matéria de gordura ministerial. Há 34 pastas, com amplas estruturas, subestruturas, empresas, autarquias, grupos de trabalho, formando uma gigantesca cadeia burocrática, fonte que alimenta a fome do Estado.
Aliás, a expansão do Estado é um fenômeno contemporâneo. Por volta de 1910, a média do tamanho do setor público em países industrializados significava algo em torno de 12% do PIB. Hoje, em alguns países europeus, como França, Alemanha e escandinavos, o setor público comanda cerca de 50% do PIB. Entre nós, as contas públicas saíram de 14% do PIB, em 1947, chegando a 20% em 1964. No governo FHC, tal índice alcançou 28% do PIB. Hoje deve ultrapassar 30%, enquanto a receita tributária acaba de alcançar 39,79% do PIB, conforme levantamento do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário. O tamanho do governo cresce em função do perverso jogo de trocas, que inclui a entrega de bens públicos a partidos, como a que se assiste.
Enquanto o País aguarda o desfecho da partilha, os números do Brasil fictício pingam: governos de oito Estados não cumpriram a Lei de Responsabilidade Fiscal; os gastos estatais no ano eleitoral de 2006 pularam para R$ 21,1 bilhões (em 2003, a cifra era de R$ 11,6 bilhões); o PAC completa um mês sem discussão, a comprovar que a urgência do lançamento era figura de linguagem; e os 59 arrastões e 21 homicídios no carnaval de Salvador são (pasmem!) louvados pelo comandante da PM da Bahia, para quem essa pequena taxa de violência denota a eficiência de sua polícia. Eis uma modesta amostra do Brasil aproximativo para abrir o ano de trabalho.