Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 25, 2007

DANIEL PIZA

Baile de mentiras


Mentira, como se sabe, ganha jeito de verdade pela repetição, enquanto toda verdade que é dita muitas vezes termina com semblante falso. Na minissérie Amazônia, até onde acompanhei, a cada capítulo se ouvia que “Manaus não deve nada às melhores capitais do mundo”; ou seja, tinha lojas com artigos de luxo importados da Europa. Não foi nem é a única capital brasileira a ser comparada assim. O Rio, afinal, é a cidade mais linda do mundo e São Paulo tem uma agenda cultural como a de Nova York. O carnaval também desfila mentiras em série. O Brasil foi criado especialmente pelo criador, que caprichou nas belezas naturais e harmonia racial. Pelo menos é o que diz todo samba-enredo.

Enquanto isso, as cidades são tomadas por violência e a natureza é mais explorada que comprador de abadá em Salvador, onde nada menos que 41 ônibus sofreram arrastão, para não falar da conversão das ruas em banheiro a céu aberto. Sugeriram suspender o carnaval em luto pelo menino João Hélio, mas, se a cada assassinato ocorrido no Brasil fosse feito o mesmo, o ano teria 365 Quartas-Feiras de Cinzas. Nas estradas federais, o número de mortes em acidentes, depois do recorde de fim de ano, superou sua marca mais uma vez; parece que a Operação Tapa-Buraco não resistiu à primeira chuva de verão. Mas quem quer falar sobre isso, se as “autoridades” estão nos camarotes de cerveja ou então isoladas do mundo real em alguma praia militar?

Carnaval, segundo os estudiosos, seria a festa da espontaneidade e do riso, em que o povo expressaria seu desejo de liberdade, etc., etc. Mas o brasileiro, maledicente pelas costas e servil pela frente, não parece mais a fim de gozação no sambódromo. Será porque as escolas são todas patrocinadas por estatais e pelos grandes grupos privados, cuja ligação vai muito além da lei Rouanet? Não vi ninguém tirando sarro dos corruptos, jogando limão em caricatura de político, lembrando como Joãosinho Trinta que quem gosta de miséria é intelectual. Só se fala em impérios do passado, na mãe África, nos otomanos e sei lá mais o quê. O Brasil, ali, é apenas um gigante à espera do futuro grandioso. A mentira oficial se propaga nos botequins.

Não espanta que, nesse contínuo baile de máscaras, se saiba tão pouco sobre o passado e o presente do Brasil. As escolas continuam a ensinar que “em se plantando tudo dá”, que dom Pedro I deu o grito do Ipiranga, que Tiradentes é um mártir da liberdade, que Getúlio deu soberania ao Brasil, que os anos JK foram dourados, que o único “problema” do regime militar foi a tortura, que José Sarney reconduziu a nação à democracia... Aleijadinho traduziu a alma barroca do brasileiro, Santos-Dumont é o pai único da aviação, a Semana de 22 fundou a arte modernista no Brasil, o futebol é patrimônio genético da fusão racial... É uma das historiografias menos contestadas do Ocidente; Afonso Celso e Policarpo Quaresma continuam assinando os livros didáticos.

O Brasil, como resultado, ignora o Brasil. Um dos melhores diálogos de Entreatos, o documentário de João Moreira Salles sobre a campanha de Lula, é aquele em que o atual presidente diz ao assessor, Gilberto Carvalho, que não acredita que existam 30 milhões de pessoas passando fome no Brasil, ainda que fizesse essa afirmativa todo dia e fosse basear nesses dados duvidosos sua principal campanha social do início de governo. Ok, dirão que político mente em toda em parte. Verdade - e eis um recurso típico da mentira, que é se alimentar de uma dose de verdade. Nos países sérios, as mentiras dos políticos terminam desbaratadas, cedo ou tarde. Agora me diga qual instituto de pesquisa já chegou a um número confiável sobre desnutrição no Brasil.

Há um monte de outros dados sobre o Brasil que não conhecemos com segurança. Nesta semana, por exemplo, houve de novo invasão do MST no Pontal, em propriedades que eles dizem ser improdutivas. Você acha que o governo tem o mapeamento completo das propriedades improdutivas do Brasil? E você acredita, por exemplo, nas medições das áreas desmatadas na Amazônia? Dizem que diminuíram nos últimos dois anos, justamente depois do escândalo causado pelas estatísticas divulgadas em 2004, que envergonharam a ministra Marina Silva. Mas como? A fiscalização aumentou? Até onde se sabe, como podem lhe informar em qualquer reserva nacional, a carência de vigias florestais é enorme. Isso para não falar no desconhecimento da biodiversidade. Os dados oficiais, no entanto, são lançados assim; quem quiser que conte outros.

Os subprodutos desse carnaval de mentiras são muitos. O mais claro é a impunidade. Exemplo: se todos os partidos fazem caixa 2, como garantiu o presidente, ninguém apura quanto dinheiro é desviado (e como, onde, etc.); portanto, não há punição nenhuma, como estão aí Marcos Valério, Eduardo Azeredo e Delúbio Soares - entre tantos outros - para provar. Outro subproduto aparece na auto-imagem nacional. Dizem que países precisam de mitos, de referências simbólicas que tragam unidade e inspiração. O mito brasileiro, por exemplo, seria o da civilização tropical, do progresso adoçado pela alegria, pelo “calor humano”. Mas de nada serve um mito se ele se opõe tão frontalmente à realidade, se ele se torna um carro alegórico de lorotas, se ele é a musa de tanta enganação. Como na fábula da tartaruga e da lebre, a mentira pode ter pernas curtas, mas no Brasil sempre termina com vitória.

SKINDÔ, SKINDÔ

Quanto ao carnaval propriamente dito, é curioso como as belezas e inovações agora estão relacionadas à produção e à tecnologia. Os carros estão cada vez maiores e mais funcionais, com efeitos especiais surpreendentes, como os da Viradouro e aquele livro da Mocidade. Mas continuo sem entender o que faz um jurado dar 9,9 em vez de 10 ou 9,8 para um determinado quesito. E, como disseram Paulinho da Viola e Osvaldinho da Cuíca, os sambas-enredo não acompanharam a evolução: continuam muito parecidos e marciais.

CADERNOS DO CINEMA

Hoje é dia do Oscar e não gosto de ficar adivinhando resultado, até porque ainda não vi alguns filmes que têm indicações. Mas vale notar que a aproximação das obras com a não-ficção continua a ser uma tendência clara, contrariando a previsão de muitos de que o 11/9 abriria uma época de escapismos e fantasias em Hollywood. Tanto Cartas de Iwo Jima como A Rainha e O Último Rei da Escócia têm trechos documentais ou, ao menos, a pretensão de recriar fatos históricos; Dreamgirls não é uma cinebiografia de artista, mas parece ser mais uma; e Babel discursa sobre a realidade contemporânea da globalização. Eu gostaria que Clint Eastwood vencesse, por seu olhar que recusa o simplismo. E acho que Os Infiltrados, de Martin Scorsese, não é tão bom quanto Os Bons Companheiros, de Martin Scorsese.

Como no ano passado, trata-se de uma boa safra sem nenhum filme cinco-estrelas. Há um pouco de cada gênero: “road movie”, filme de guerra, de gângster, político, etc. Muitos, curiosamente, se sustentam no talento de seus protagonistas, de atores de gerações distintas - de Peter O’Toole a Forest Whitaker, de Judi Dench a Kate Winslet, passando, claro, por Helen Mirren. Isso tudo significa que há material e público para fazer filmes ainda melhores.

RODAPÉ
Breve esclarecimento: Alain de Botton, autor de The Architecture of Happiness, nasceu na Suíça e se naturalizou inglês. Aproveito para corrigir também, no texto sobre o centenário do escritor inglês W.H. Auden publicado na quarta-feira, que o ator que lê o poema Funeral Blues no filme Quatro Casamentos e Um Funeral é John Hannah, e não Simon Callow.

HAI KAI DO CAFÉ
Caldo de rubiácea

Fumegando por dentro -

O texto esquenta e flui.

POR QUE NÃO ME UFANO

Dizem que o ano só começa amanhã. O segundo governo Lula, com certeza, não começou. O ministério não está definido, as obras do PAC não desempacam, não há nenhuma reforma à vista - política, tributária, etc. - e a educação continua piorando de qualidade. Sistemas como o aeroviário, o prisional e o energético continuam à beira do colapso, mas o governo prefere isso a fazer qualquer coisa que lembre aquela palavra feia, “privatização”. Não há, portanto, pista nenhuma de que as promessas de crescer mais e de melhorar os serviços públicos vão ser cumpridas tão cedo. Feliz ano velho.

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