Entrevista:O Estado inteligente

sábado, fevereiro 24, 2007

Música A tecnologia denuncia fraude de pianista

Dedurada pelo iTunes

Com ajuda do programa de computador, descobriu-se que
os discos de uma pianista cultuada são uma fraude


Marcelo Marthe

Quando morreu, em junho passado, aos 77 anos, a inglesa Joyce Hatto foi saudada como a "maior pianista que quase ninguém ouviu". Ela havia abandonado a carreira de concertista em 1976, para combater um câncer. Por volta do ano 2000, no entanto, uma pequena gravadora, de propriedade de seu marido, começou a lançar discos em que ela interpretava algumas das maiores peças do repertório clássico. Sempre às voltas com a quimioterapia, Joyce era capaz de tocar músicas de compositores tão distintos quanto Haydn e Prokofiev, com idêntica fluência e precisão. Foi um retorno triunfal. Há dez dias, contudo, a revista inglesa Gramophone trouxe à luz evidências de que os discos de Joyce são uma fraude. Joyce foi dedurada por um programa de computador – o iTunes, da Apple. Quando um crítico da Gramophone tentou ouvir em seu computador um disco da instrumentista, o iTunes, que identifica e cataloga músicas por meio de códigos digitais, atribuiu a autoria das faixas a outro músico contemporâneo.

Por si só, a informação do iTunes não bastava para comprovar a existência de um golpe. Por isso, a Gramophone contratou especialistas para dissecar as obras de Joyce com precisão digna de uma investigação da série C.S.I. Diretor da empresa Pristine Classical e engenheiro de som renomado, o inglês Andrew Rose comparou as ondas sonoras dos CDs da pianista com aquelas das gravações que pareciam ter sido copiadas. Os resultados foram espantosos. Num CD com obras do russo Leopold Godowsky (1870-1938), detectou-se um aumento artificial de até 15% na velocidade da execução. Uma vez desfeita essa adulteração, verificou-se que a interpretação repetia a dos pianistas Carlo Grante e Marc-André Hamelin para as mesmas peças. Noutro disco, o pianista russo Vladimir Ashkenazy e a Filarmônica de Viena foram alvos da rapina. Uma gravação deles foi copiada num CD em que Joyce supostamente toca ao lado de uma orquestra polonesa regida por um certo René Kohler. Não há outros registros da existência dessa filarmônica – tampouco do maestro.

A autenticidade das gravações de Joyce Hatto também é contestada por um estudo da Universidade de Londres. Os pesquisadores se valeram de um método ainda mais preciso, a análise de paisagens sonoras. Meses antes de a discografia de Joyce ser posta em dúvida, eles já detectavam que suas versões das mazurcas do polonês Frédéric Chopin (1810-1849) eram idênticas a outras previamente existentes – e portanto suspeitas. "Há décadas se sabe que há muita enganação nos discos de música erudita. Com as tecnologias de hoje, está ficando mais difícil esconder as falcatruas", disse a VEJA o coordenador do projeto, Nicholas Cook. Ao que tudo indica, o viúvo de Joyce e empresário musical William Barrington-Coupe foi o mentor das fraudes. Desde que o escândalo estourou, ele evita aparecer. À revista Gramophone, deu uma declaração bem à moda dos políticos brasileiros: disse que estava surpreso e esperava que uma "investigação cuidadosa" chegasse à verdade dos fatos.

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