Até hoje nosso dramaturgo é mal avaliado
Nelson Rodrigues nunca foi bem entendido.
Suas obras estão sendo reeditadas agora pela editora Agir, e continuo com a sensação de que ele é criticado pelo que não é e pouco elogiado por suas maiores contribuições à literatura do país.
Já saíram “A vida como ela é” e “O casamento”, romance que eu filmei em 75, com Paulo Porto e Adriana Prieto, livro que é considerado chocantemente pornográfico, atentando contra a família. Nelson não é nada disso. Sua obra sempre foi vista como “suja” pelos moralistas e censores desde “Álbum de família”.
Mas a importância de Nelson não é a de um polêmico transgressor moral. Nelson se impressionava desde criança com a crueza dos dramas de amor e sexo nos vizinhos, nas casas de família, ele via a dor e o sofrimento da classe média dos anos 30 e 40, esmagada pela moralidade obrigatória, e disso teceu seus dramas e comédias.
Mas a guerra entre moral obrigatória e verdade inconsciente era apenas trama de seus textos, pois NR foi genial nas peças, não pelo “conteúdo” da história, mas pela forma polifônica de narrar, como um sarapatel de emoções superpostas em cenas ao mesmo tempo trágicas, cômicas e desconstruídas numa metalinguagem invisível. NR é importante como inventor de linguagem. É fácil genializar homens como G. Rosa ou Graciliano, mas Nelson não cabe nos pressupostos conceituais canônicos.
A importância da obra de Nelson é onde ela parece não ter importância. Onde ela é menos “profunda”, ali é que se encontra uma altura rara. Nelson era filho do jornal, do texto efêmero, dos casos de polícia, das noites nas delegacias. Nelson detestava teorias e por isso preservou o real brasileiro, transformando o “óbvio ululante” em categoria filosófica.
Sua obra é um armazém, um botequim geral, uma quitanda de Brasil. “A poesia está nos fatos”, como escreveu Oswald no “Pau Brasil”.
Pois é, também Nelson odiava as metáforas gasosas, gosmentas. Ele inventou a antimetáfora no Rio, como Oswald em São Paulo. Suas imagens não aspiravam a um “sublime” idealismo.
Ele escrevia: “O torcedor rubro-negro sangra como um César apunhalado” ou “Seu peito se encheu de um ar heróico como anúncio de fortificante” ou “A bola o seguiu com a fidelidade de uma cadelinha” ou “A virtude é bonita, mas exala um tédio homicida”, “O sujeito rói a própria solidão como uma rapadura”, “Fulano estava em fremente lua-de-mel consigo mesmo”, “O brasileiro é inibido até para chupar um Chicabom”, “Consciência social de brasileiro é medo da polícia”.
Nelson via transcendência nos fatos mais rasteiros, ele jogava luz sobre as coisas mais comuns. Visto por ele, tudo boiava no mistério: os ovos coloridos de botequim, as falas dos barnabés, as moscas de velório no nariz do morto. Nelson fazia a vida brasileira ficar universal, não por grandes gestos, mas pelo minimalismo suburbano que ele praticava. E o sublime aparecia na empada, na sardinha frita ou no torcedor desdentado.
Nelson não era um homem culto. Tinha lido Dostoievski, Eça, Anatole France, Shakespeare em tradução, mas sua ignorância era límpida, era uma proteção purificadora contra os perigos do “rocambole” literário ou os rebuscamentos conceituais.
A morte o acompanhou desde a infância, desde a visão do assassinato de seu irmão Roberto.
Pela consciência da finitude, nunca aspirou a monumentos eternos. Ele celebrava o efêmero e, através dele, o Brasil ficava visível, com a dolorida luz de sua pobreza, sua emocionante fome de existir. Sua obra é um desfile de tipinhos anônimos, insignificantes e nisso aparecia sua grandeza desprezada. São prostitutas bondosas, cafajestes poéticos, canalhas reluzentes, vagabundos épicos, sobrenaturais de almeida, adúlteras heróicas e veados enforcados. Via tramas shakespearianas nas notícias populares. Uma vez mostrou-me uma manchete de jornal popular: “Rasgou à faca o coração da amante que ajoelhada implorava clemência”. “Isso dava uma peça genial...”, me disse. Seus escritos de teatro eram propositadamente imperfeitos... Ele me dizia: “O que estraga a arte é a unidade...” Pode haver coisa mais contemporânea? Nunca deixava a literatura prevalecer sobre a magia dos fatos. Sempre um detalhe do mundo caricaturava a maior dor. No meio da tragédia, vinha a gíria: no suicídio — o guaraná com formicida; no assassinato — a navalhada no botequim; na viuvez — o egoísmo; no velório — a piada.
Uma vez, me contou que viu uma família esperando aflita num hospital a notícia sobre um filho que fora atropelado. Morreu ou não? Esperavam todos, vistos pelo Nelson através do vidro do corredor. Viu o médico chegar e comunicar que o menino tinha morrido. Nelson então descreve-me: “Eu vi pelo vidro. Não ouvi um som. O médico chegou e falou com a família a terrível notícia. A família começou a se contorcer em desespero. Pai, mãe, tios gritavam e choravam e, através do vidro, pareciam dançar. Pareciam dançar um mambo.
Daí eu concluí a verdade brutal: a grande dor dança mambo!...” Nelson recusava teorias, amparos ideológicos e políticos. Por isso, atingia o mais importante “dentro” dos fatos. Contou-me um episódio hilário: uma vez o Vianinha e o Ruy Guerra, grandes artistas, lhe propuseram escrever um roteiro de filme sobre uma mulher adúltera. Nelson foi trabalhar com eles, mas desistiu e me disse: “Parei porque eles queriam que a adúltera largasse o marido e fosse para a cama com o amante movida apenas pelas relações de produção....” Nelson era assim. Nelson era Noel Rosa, era Lamartine Babo. Mas foi tratado como uma anomalia moral. Até hoje, Nelson espera uma análise profunda de seu estilo.
Ele dizia que “o mal da literatura brasileira é que nenhum escritor sabe bater um escanteio”.
Ele sabia.
Entrevista:O Estado inteligente
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