O Estado de S. Paulo |
29/5/2006 |
Não se pode, de nenhuma maneira, minimizar o que aconteceu em São Paulo, com a criminalidade tomando conta do Estado e agindo como se uma espécie de Estado fosse. Normalmente, esse tipo de acontecimento é, logo depois, considerado um mero episódio ao sair dos olhares da mídia e os mais favorecidos socialmente se voltam para medidas complementares no que diz respeito à sua segurança privada. Um dos pontos em que a maioria dos filósofos modernos está de acordo consiste em que a função primeira do Estado é a de assegurar a paz pública. Autores tão distintos como Hobbes, Humboldt e Hegel consideram que a segurança dos cidadãos é a condição mesma da existência do Estado e das liberdades que podem, assim, se desenvolver. Por vários anos se impôs nas universidades uma ideologia dita social que desculpava os atos criminosos como se fossem expressões de um "banditismo social", nascido das agruras de uma sociedade profundamente desigual. A ausência de medidas estatais daí resultantes terminou por gerar uma impunidade que, hoje, faz pagar o seu preço. Esta ideologia tem dois eixos estruturantes: o da causa social do crime e o da dita doutrina dos direitos humanos. O discurso de certos políticos e intelectuais se apóia numa pretensa pobreza enquanto razão de ser da criminalidade. Isto termina por servir de justificativa para que nada seja feito, pois, se a causa é social, não há nada a fazer, visto que deveríamos esperar, supostamente, que todos os problemas sociais fossem resolvidos para que, num golpe de mágica, a criminalidade desaparecesse. Ora, há inúmeros países pobres que não apresentam os assustadores índices da criminalidade brasileira, além de países ricos também apresentarem os mesmos fenômenos. Urge que a criminalidade seja combatida em seu terreno próprio, com repressão e inteligência, mostrando que a impunidade não será tolerada. A doutrina dos direitos humanos foi instrumentalizada e ideologizada por determinados políticos e intelectuais, que se apoderaram, inclusive, de boa parte dos formadores de opinião. Direitos humanos vieram a significar proteção a presos ou a infratores como o MST, que agem contra ou ao arrepio da lei. Na verdade, os direitos humanos foram apropriados para proteger ações contra o Estado de Direito. Os próprios policiais foram tidos como uma espécie de criminosos que deveria ser objeto de julgamento. Inverteu-se a situação de tal maneira que os policiais passaram a ser controlados e monitorados, enquanto os criminosos foram deixados em sua "liberdade". Resultado: os próprios criminosos acharam que poderiam passar a assassinar impunemente os policiais, tão desprezados pelos que se dizem representantes dos direitos humanos. As ações do PCC exibiram uma organização dotada de uma logística própria e capaz de intervir em vários pontos da cidade de São Paulo, do Estado de São Paulo e em outros Estados simultaneamente, seguindo uma mesma voz de comando. Essa organização criminosa apresentou uma hierarquia e recursos financeiros que são o produto de um longo processo de formação. É equivocada a opinião de que ela teria reagido, mais ou menos espontaneamente, à remoção de Marcola e de outros líderes para diferentes presídios. Essa remoção foi apenas a causa ocasional que precipitou uma ofensiva há muito tempo planejada. A escolha dos policiais como alvo não é algo arbitrário, pois eles são, por definição, os representantes do Estado. Uma das doutrinas mais prejudiciais - que orienta a elaboração de leis, a ação dos juízes e a própria ideologia dos direitos humanos - é a de que todo apenado é ressocializável, reeducável, como se a natureza humana fosse intrinsecamente boa. Trata-se de uma visão equivocada da natureza humana, pois o ser humano pode perfeitamente fazer uma escolha radical pelo mal. A história humana está repleta de ações políticas e individuais dessa natureza, Hitler e Stalin sendo apenas exemplos mais recentes e aterradores. Ora, como se poderia empreender um trabalho de "reeducação" de indivíduos que têm no assassinato sistemático a sua forma própria de ser? A política penal vigente parte do pressuposto de que qualquer indivíduo pode, com boas condições, voltar a um convívio humano normal, como se não fosse repetir e escolher novamente os atos passados e as convicções que orientaram - e orientam - as suas ações. Quando Beccaria, em seu célebre livro Dos Delitos e das Penas, advogou pela extinção da pena de morte, ele o fez por sua substituição pela "prisão perpétua com trabalhos forçados". No Brasil se confunde o exercício da autoridade, necessário a qualquer sociedade organizada e livre, com o autoritarismo, que é uma forma descontrolada de exercício da autoridade. Como resquício do regime militar, há uma tendência nacional de condenação da autoridade, que termina por propiciar o surgimento e a conservação da impunidade, como se crimes não devessem ser punidos e os indivíduos mais perigosos devessem virtualmente permanecer no convívio social, seja diretamente, seja via reeducação. O resultado de tal política, como mostrado por qualquer teoria penal e estatal séria, é que o crime tende a se ampliar, pois os menores delitos e, logo, os maiores passam a ser tolerados. Enquanto permanecermos nessa equação, qualquer medida será paliativa, pois os seus pressupostos teóricos são falsos. Acrescente-se, ainda, a modo de exemplo, a forma como certas mídias dão conta da reação policial ou de suas ações normais em períodos de crise larvar: a "violência" dos policiais contra a "violência" dos criminosos. Ora, a violência dos criminosos é fundamentalmente diferente da dos policiais, pois esta última deveria ser nomeada propriamente de uso legal da força, visando a conter a violência que se volta contra a sociedade em seu conjunto. Se nada for feito, é o Estado brasileiro que estará em questão. |
Entrevista:O Estado inteligente
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