A "cristianização" é uma tradição na política brasileira desde o episódio que lhe deu o nome: o apoio velado do maior partido político da época, o PSD, ao candidato do PTB, Getúlio Vargas, em 1950, mandando literalmente às favas as pretensões do correligionário mineiro Cristiano Machado, lançado oficialmente na convenção do partido. Dez anos depois, Juscelino Kubitschek, de olho na eleição de 1965, jogaria terra na cova do pessedista Henrique Lott favorecendo Jânio Quadros, apoiado pela UDN. E, na primeira eleição direta após a ditadura militar que resultou de uma série de irresponsabilidades civis, entre as quais esta, o chefão do PMDB, Ulysses Guimarães, seria "cristianizado" em favor do franco-atirador Fernando Collor de Melo, em 1989.
Poucas vezes na História da República, mesmo sendo ela tão pródiga em traições sórdidas, se assistiu a um espetáculo tão grotesco quanto o atual afundamento da inglória ambição do ex-governador paulista e tucano Geraldo Alckmin de impedir a reedição do governo petista de Luiz Inácio Lula da Silva em outubro.
A origem dessa "cristianização" está na luta de Alckmin contra Serra pela indicação oficial do PSDB. Não inteiramente por culpa deste, diga-se. Sem a penetração que o outro sempre teve na máquina partidária, sem uma assessoria digna da denominação e, sobretudo, sem habilidade para se conduzir no embate, o ex-governador deixou claro que se dispunha a tudo para atingir o alvo, por não lhe restar alternativa. Da refrega entre o sôfrego e o predestinado, o primeiro ficou com a indicação e o perdedor, com as batatas que lhe podem garantir uma boa invernada no maior governo da Federação, esperando acabar a segunda e - espera-se - última gestão federal de Lula e do PT. O mal-estar entre as duas hostes foi tamanho e contaminou suas campanhas de tal maneira que não parece de todo afastada a hipótese de surgir aí algum comitê Lula-Serra, como antes já houve as alianças aparentemente estapafúrdias Jânio-Jango (Jan-Jan), "cristianizando" Milton Campos, e Fernando Henrique-Maluf, para desespero de Mário Covas.
Com o barco de Alckmin fazendo água já na largada, as tropas serristas se deliciam com a chance de o adversário derrotar o correligionário, raciocínio idêntico ao da torcida de JK pelo triunfo de JQ. No caso atual, com uma agravante: uma vitória de Alckmin adiaria o sonho presidencial de Serra por mais quatro anos. Pois o ocupante do cargo no Executivo que disputa a reeleição tem vantagens demais sobre seus oponentes e, quando se dispõe a usar tais vantagens até o limite delas, como faz o presidente Lula, torna o conceito da igualdade de oportunidades dos candidatos uma balela. Dessa forma, o projeto presidencial do ex-prefeito da capital passa pelo malogro da candidatura do ex-governador do Estado, nunca por seu êxito.
Igual raciocínio justifica a traição de outro emplumado ilustre, o governador de Minas Gerais, Aécio Neves, autor da frase mais insidiosa da atual disputa presidencial: "Meu candidato é Alckmin, mas o candidato de Minas é Itamar" - que, como se sabe, não é um postulante, mas um anticandidato, lançado pelo Planalto, com articulação do comissário José Dirceu, para abater os balões de ensaio autonomistas da banda oposicionista do PMDB fisiológico e adesista.
Agora, vem à tona outra traição de alto coturno, embora não sejam nítidas as causas que a produzem. No meio do tiroteio verbal entre o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) e o prefeito do Rio, César Maia (PFL), içando à superfície as diferenças de interesses regionais entre os maiores aliados da oposição (se é que a denominação vale, no caso), emergiu a incompatibilidade entre a ambição nacional do PSDB e as picuinhas paroquiais do ex-governador do Ceará. Ao ser flagrado no palanque de Cid Gomes (irmão de Ciro Gomes), do PSB, no qual brilhará Lula, ficou claro o antagonismo do cacique com seu sucessor Lúcio Alcântara, do PSDB, candidato à reeleição e eleitor de Alckmin. A condição de presidente nacional da legenda retira de Jereissati qualquer possibilidade de justificar a própria postura e dá razão a Maia, que, com sua verve cheia de graça e veneno, o chamou de "coronel de smoking".
O diabo é que os tucanos encomendaram o traje de gala para o baile da posse do inimigo, mostrando que mesmo os mais letrados deles andaram faltando a algumas aulas fundamentais de História do Brasil. Basta lembrar que a traição a Cristiano terminaria no suicídio de Getúlio; a "cristianização" de Lott, na renúncia de Jânio e, depois, na ditadura que cassaria Juscelino; e a punhalada nas costas de Ulysses, na aventura de Collor, que seria impedido. Não que a derrota anunciada de Alckmin, e logo no primeiro turno, prenuncie uma catástrofe nacional similar. Mas é bom que os candidatos tucanos a oportunistas pensem nas conseqüências nefastas que pode promover o triunfo humilhante de Lula e do PT, ainda desmoralizados pelo escândalo do mensalão e tudo.
Pode ser que uma eventual avalanche de votos em Lula contrarie os planos tucanos e pefelistas em vários Estados onde se consideram imbatíveis. E, mesmo que não atinja frontalmente o favoritismo dos dois mais importantes, Serra e Aécio, resta saber que efeitos poderá ter a transferência maciça de votos em Lula para o PT nas Assembléias Legislativas de São Paulo e Minas Gerais. Será uma gestão estadual prejudicada por um permanente desgaste no Legislativo uma plataforma útil para lançar as pretensões de sucessor, óbvias nestes favoritos aos governos de seus Estados? E quem lhes garante que terão fôlego para derrotar alguém ungido por Lula, fortalecido por uma eleição consagradora, daqui a quatro anos?
É o caso de lhes lembrar a lição de Tancredo: "O problema da esperteza é que ela termina engolindo o esperto."