Sem bonés, camisetas
e trapaças
Novas regras de campanha ficam aquém
do ideal, mas representam um passo certo
rumo à moralização das eleições
Ronaldo França e Ronaldo Soares
Jair Ferreira/Tribuna do Norte | Ed Ferreira/AE |
Fábrica de camisetas (à esq.) e showmício do PSDB: exemplos da gastança que a lei tenta conter |
A prestação de contas de campanhas políticas, no Brasil, sempre foi obra de ficção, com grandes doses de mistério – quando não de absurdo. O que já era uma tradição atingiu o limite do insuportável nas duas últimas campanhas, de 2002 e de 2004. Esse cenário começou a mudar na semana passada com a decisão do Tribunal Superior Eleitoral de fazer valer, já para o pleito deste ano, um conjunto de medidas de controle que começa a fechar o cerco aos candidatos velhacos e seus tesoureiros ficcionistas. A face mais visível do pacote é a proibição do uso de bonés, camisetas, chaveiros, cestas básicas e coisas do tipo, que compõem o kit de mimos com que os candidatos costumam irrigar os grotões em busca do voto dos mais necessitados. As novas regras são uma tentativa de limitar a influência do poder econômico na disputa. O resultado poderá ser um expressivo enxugamento de gastos já nesta campanha (veja o quadro). Mas a lei que entra em vigor agora é mais do que isso. No conjunto, cria mecanismos que aprimoram o controle financeiro, dão maior agilidade à Justiça Eleitoral e estabelecem punições mais severas aos que tentarem burlar a lei. São medidas insuficientes para pôr fim a todos os desmandos que se registraram nas últimas eleições. O ideal seria o estabelecimento de um teto de gastos, mas não se pode negar que a iniciativa é oportuna.
Com as novas regras, não será possível, por exemplo, repetir o show de gastos que se viu na performance da dupla sertaneja Zezé Di Camargo & Luciano, durante a campanha do presidente Lula. Os irmãos rodaram o Brasil a bordo de jatinhos, com todas as despesas pagas e um polpudo cachê de 75.000 reais por show, para animar os comícios de Lula. A contratação da dupla soou como exagero mesmo em tempos de farra de gastos eleitorais. Não custa lembrar, o relacionamento dos cantores com o partido evoluiu para o campo da promiscuidade que se tornou conhecida graças a um espetáculo numa churrascaria de Brasília. A dupla cantou de graça na festa cujo objetivo era arrecadar fundos para a construção de uma sede para o PT, mas tinha em avaliação, naquele momento, pedido de patrocínio do Banco do Brasil para uma turnê.
Chamada de minirreforma eleitoral, a nova lei avança principalmente ao apertar a fiscalização. O candidato terá de receber as doações e pagar a seus fornecedores através de uma única conta, o que facilita imensamente o trabalho de auditores. Não poderá haver doações ou pagamentos em dinheiro vivo. A prestação de contas terá de ser divulgada na internet pelo menos duas vezes durante a campanha. O TSE também será obrigado a ser mais ágil. Os candidatos eleitos precisarão ter suas contas analisadas antes da diplomação. O que ocorria até hoje é que os candidatos só eram pegos em falcatruas após estar empossados, o que tornava mais difícil a condenação, graças a manobras protelatórias ou aos embargos auriculares de praxe. Isso quando a sentença não era dada após o fim do mandato. O que se espera agora é que haja de fato punições, e que elas sejam mais severas. O candidato eleito poderá ser cassado caso se comprove que houve abuso do poder econômico. E, pela primeira vez, responderá solidariamente pelos ilícitos. "A natureza humana é o que é. Algum ilícito deverá ocorrer, mas o espaço ficou muito mais curto", diz o relator do projeto, deputado Moreira Franco (PMDB-RJ).
Embora traga avanços, a lei não impedirá uma parte expressiva da maracutaia que costuma cercar as eleições. Primeiro porque não será possível acabar com as malas de dinheiro entregues diretamente pelos doadores do caixa dois aos fornecedores. Ainda não estarão, portanto, eliminadas aquelas cenas de sacos de dinheiro circulando pelos subúrbios para pagar despesas com jatinhos, ou marqueteiros com contas no exterior. Também não haverá controle sobre as chamadas despesas de pessoal, rubrica aparentemente inocente que inclui acordos financeiros espúrios com os donos de currais eleitorais e compra de votos. Providências mais eficazes deverão ser estudadas pelo Congresso. O Brasil já tem em estoque medidas capazes de melhorar o processo eleitoral e com isso reduzir a monumental teia de corrupção que se renova a cada eleição no país. Entre elas, duas estarão valendo para esta eleição: a verticalização (a obrigatoriedade de os partidos repetirem nos estados as coligações nacionais) e a cláusula de barreira, que estabelece um limite mínimo de votos para que um partido exista, o que acaba com as legendas de aluguel.
A decisão do TSE, na semana passada, ainda poderá ser alvo de contestações do Supremo Tribunal Federal. Questiona-se a legalidade constitucional de introduzir novas regras a menos de um ano das eleições. Há divergências sobre se as mudanças de agora interferem no processo eleitoral – ou seja, se são comparáveis a medidas como modificação dos prazos para lançamento de candidaturas – ou se são apenas alterações de regras secundárias de campanha. Alguns analistas também se preocupam com o precedente que pode estar se abrindo com a introdução de mudanças, ainda que não estruturais, no processo eleitoral a menos de um ano da eleição. Na semana passada, o presidente do TSE, Marco Aurélio Mello, trouxe essa discussão para o terreno da lucidez. Diz Mello: "O tribunal deixou de lado a ortodoxia. (...) Se há duas interpretações, e uma delas atende melhor ao interesse público, convém adotá-la".