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A defesa que Lula fez da democracia na quinta-feira serve a quatro grupos: aos petistas, aos ignorantes, aos marotos e aos de má-fé. Sei que já o primeiro adjetivo pode ser forte o bastante para, sozinho, implicar todas as outras qualidades, mas se admita, por hipótese ao menos, que haja entre eles os muito bem informados, o que não quer dizer, é claro, que estejam certos ou, pior, que suas escolhas sejam morais. Lula é um animal político raro. Tem sensibilidade para o discurso popular e o couro duro. E, é preciso admitir: uma tremenda cara-de-pau. Eleger-se com a plataforma com que se elegeu e governar como governa? Bem poucos conseguiriam. Reconheço-lhe o talento de bufão e uma inteligência privilegiada. Mas sua ignorância não tem limites. É alastrante. E a ligeireza com que fala sobre o que não entende é de trincar catedrais, como diria um velho reacionário. "Progressista", como sabem, é o PT. Pior: ele vocaliza retalhos, fragmentos, do que ouve daquela intelectuália inútil que o cerca, por quem, de fato, tem enorme e justo desprezo. Na quinta, ao lado do francês e antiamericano Jacques Chirac — aquele que, acertadamente, diga-se (neste particular apenas), ameaçou o Irã com retaliação nuclear, depois de puxar o saco profético dos aiatolás —, desandou a fazer digressões sobre a democracia na América Latina. Segundo o nosso historiador improvisado, ela está forte e saudável. Indecência Vejam só: Lula falou bobagem a dar com pau sobre a Revolução Francesa, mas seu discurso não foi ingênuo no que respeita ao nosso continente. Cada um à sua maneira, ele próprio, Morales, Chávez e até Kirchner estão dando uma enorme banana para as instituições. O presidente da Venezuela solapa a democracia recorrendo aos próprios instrumentos que o regime faculta; o cocaleiro já é mais chegado a um ato explícito de força: manda logo seus macacos ocupar empresas; Kirchner abusa dos escombros institucionais a que foi reduzida a Argentina para praticamente calar a oposição. E Lula, o mais sofisticado deles todos, investe numa cultura de desprestígio à democracia. O empresariado que fecha com o governo, seja o do setor financeiro, seja o do setor produtivo, não se dá conta de que, com efeito, se um oposicionista for eleito no Brasil, não serão assim tão grandes as mudanças. Talvez não mude nada, na economia, por iniciativa interna, se o escolhido for, por exemplo, Geraldo Alckmin. A chance de uma mudança, pró-mercado e anticassino, era Serra. Está fora dessa disputa. Por que temem desembarcar de Lula? Que revolução? A verdadeira revolução democrática do século 18, ensina Hannah Arendt, o que foi lembrado por Contardo Calligaris na revista Primeira Leitura de maio, foi a americana, não a francesa. O Iluminismo que, de fato, ampliou os horizontes da liberdade individual e foi e é um poderoso antídoto contra a tirania é o anglo-saxão, não o francês. A dita Revolução Francesa o que fez foi oferecer cabeças aos montes, inclusive e por boa fortuna, também a de Robespierre, o jacobino tarado. A Revolução Francesa de que o marxismo e o leninismo são caudatários é a jacobina, cujo governo, entre 1792 e 1795, não por acaso, ficou conhecido como Terror. As conquistas ditas humanistas ou modernas, especialmente os valores da tolerância, de matriz francesa, são uma herança girondina, mais identificada com o que se convencionou chamar, ao longo da história, de "direita". A França que fez a revolução, Luiz Inácio, também fez a República de Vichy, que é bem mais recente. Vá perguntar a Marilena Chaui o que isso quer dizer. A Europa cuja história justificaria uma democracia mais forte do que a nossa viu nascer o comunismo, o fascismo (italiano, espanhol, português...), o nazismo e, mais recentemente, a explosão de movimentos ultranacionalistas de feição genocida. Por que Lula não pára de falar besteira? É fácil saber: porque seus "intelectuais" não param de pensar besteira. Ah, grandes cretinos! Com que então a história de um país e seus malefícios presentes se definem por tudo aquilo que nos falta e que não tivemos?! Não é de estranhar que os primeiros marxistas brasileiros tenham se esforçado tanto para identificar o "feudalismo" nativo — sim, houve uma corrente com este pensamento no país. À falta de senhores feudais à moda medieval, escolheram para representar o papel alguns senhores de engenho, coitados. A maioria padecia de doenças oriundas da desnutrição. Por que não lêem Gilberto Freyre, cambada de energúmenos? Não, Lula! Não precisamos de Revolução Francesa. Precisamos é de menas sem-vergonhice. É verdade. Não temos, como lembrou o presidente, mais ditaduras militares na América Latina — com a exceção de Cuba e Venezuela (ou alguém vai tentar me provar que Fidel é advogado?). As ameaças, hoje em dia, são outras e têm origem em partidos e movimentos que resolveram fazer das eleições gerais um caminho para destruir o regime de liberdades públicas. Querem agregar o adjetivo "popular" ao substantivo "democracia" e, com isso, calar o que o modelo tem de mais virtuoso, que é o respeito à divergência, à minoria, à alternância de poder. O PT está nesse grupo. Comprar um Parlamento é tão nefasto quanto fechá-lo. Bem pensado, é um procedimento ainda mais canalha, porque não ousa dizer o nome do que pratica nem permite que aqueles descontentes com os mandatários se organizem para combatê-los. Ao contrário do que diz Lula, a democracia vai muito mal no continente. Provocações e escravos Lula também experimentou um pouquinho da hipocrisia européia. Quando, tomado de todos os sentimentos escravos, foi reclamar com Chirac do protecionismo europeu, o velho gaulês lhe deu uma banana. Como um bom nhonhô, passou a mão na cabeça do servo voluntário e, claro!, culpou os Estados Unidos. Ora se não culparia... Chirac deveria devolver, junto com o discurso, os corpos americanos enterrados na Normandia enquanto uma parte da França fazia o trabalho sujo em Vichy. Mas Lula não precisa saber dessas coisas. Essa aula o Marco Aurélio Garcia não lhe deu porque ele já tinha posto aquele bermudão branco para jogar bola. É o que dá eleger (e, quem sabe, reeleger) um peladeiro para a Presidência, cercado por marxistas bocós. Sei que textos como este entram naquela categoria que ofende algumas sensibilidades: "agressivo", dirão. Pois eu considero uma agressão que o presidente do Brasil chame um ditador de exemplo de democracia. Uma agressão e uma provocação. Eu e meu chapéu O motorista de táxi queria a minha ajuda para achar a rua. A obrigação de saber era dele. Eu contratara o seu serviço. Canalhas e incompetentes sempre querem a nossa camaradagem cordial. Não dirijo. Sou desorientado e, no que respeita às ruas, depois de duas quebradas à direita e quatro à esquerda, não tenho a menor noção de onde estou. Ele me deixou longe de onde eu queria. E com um dedo do pé quebrado. Vai, Reinaldo, ser gauche na vida. Assisti a alguns capítulos do seriado 24 Horas. Só para ver Jack Bauer matar os terroristas para os quais o senador Suplicy cantaria Blowing in the Wind e aos quais Lula e Chirac fariam uma pregação sobre as assimetrias do comércio internacional e os males do imperialismo americano. Jack sempre dá instruções assim a seus homens: "Vá para a saída leste do prédio". Uau! O que é o leste para quem não tem norte? Agora sei: os americanos dominam o mundo porque podem não saber onde ficam o Brasil e a Bolívia (por que eles precisariam disso?), mas sempre sabem onde é a saída leste. Desci do carro, achei que estava indo para onde eu queria, mas estava era voltando. Foi minha primeira escapada depois de mais de um mês. Estou mais branco do que de costume, com o meu chapéu, meu colarinho de sacristão, o passo manquitola... Passei por um grupo de rapazes que ainda não acharam o primeiro emprego de Lula (Lula também não achou o seu...). Um deles comentou: "Vixe, parece Santos Dumont!". Não pareço. O mundo dos chapéus, já disse, é quase clandestino. O meu panamá é discreto. O chapéu do Pai da Aviação me parecia, sei lá, um tanto suspeito, amaneirado mesmo. "Por favor, o senhor pode me dizer onde fica a rua tal?" O vendedor de churrasco grego me olhou com um ar um tanto hostil. Intuí que foi o pronome de tratamento que empreguei. Ele era mais jovem do que eu, e o meu "senhor", certamente, pareceu-lhe uma frescura, uma afetação. E mais aquele colarinho, aquele chapéu... "É ali, ó, tá vendo aquele prédio cinza pichado? Você vai por aqui, passa a fonte. Que número que é? Par ou ímpar?" Eu não me lembrava. Busquei no bolso o papel. Ele se impacienta comigo. Pensei em comprar um churrasco num gesto amistoso. R$ 1. Com suco. Talvez ele se negasse a me vender, não aceitando ser aviltado por quem o chamava de "senhor". Converti mentalmente o poder de compra do salário mínimo em churrascos gregos e lembrei do Apedeuta e das eleições. Xiii... "Ímpar." "Então é lá mesmo. Pode ir." Obedeci. A igualdade é um vírus. Um amigo me disse hoje que gente que desenha mal padece de falta de orientação. É fato. Minha mulher é ótima desenhista e sempre sabe onde está. Meu traço é tão ruim quanto o de Basquiat. Só não tenho a mesma cara-de-pau, e a minoria a que pertenço anda em decadência. Às vezes, num truque feminino clássico, ela faz de conta que ouve a minha opinião sobre caminhos. Ouve nada. Ainda bem. Mas isso já é parte da rotina doméstica. A única decisão importante que tomei na quinta-feira é nunca mais tratar por "senhor" um vendedor de churrasco grego. Aquele percebeu, em mim, um partidário da Gironda... [reinaldo@primeiraleitura.com.br] |
Entrevista:O Estado inteligente
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domingo, maio 28, 2006
Lula e a Revolução Francesa Por Reinaldo Azevedo
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