No primeiro clichê da edição de domingo da Folha, havia uma entrevista com o sociólogo francês Alain Touraine. O texto desapareceu depois, no jornal que chega aos assinantes, e foi mantido apenas na versão eletrônica. Foi uma pena. Apesar de os jornais estarem perdendo espaço para os meios eletrônicos, eles ainda têm mais peso nos setores formadores de opinião. A entrevista de Touraine merecia entrar para a história dos equívocos (clique aqui para ler íntegra). Escrevi a seguinte nota, no domingo de manhã, no site (quem já leu pode pular o que segue em itálico): "Estranhíssima a entrevista concedida pelo sociólogo francês Alain Touraine, 80, a Uirá Machado, da Folha, publicada neste domingo. Num momento de lucidez, diz que 'os escândalos têm demonstrado que o PT não é um partido democrático, que é ainda fundamentalmente um partido de tipo stalinista'. Ele acredita que Lula sempre soube de tudo, mas que precisou recorrer a expedientes escusos para governar. Sabe-se lá por quê, sustenta que o petista 'é a única pessoa que pode manter um equilíbrio entre as demandas populares e um caminho de institucionalidade e respeito à estrutura econômica internacional'. Donde se pode concluir que a manutenção de tal equilíbrio depende, então, de uma estrutura stalinista de apoio e de um presidente condescendente com a corrupção. Touraine afirma também que vê, sim, o risco de o país resvalar no populismo, mas não com Lula. Ele falou à Folha na 13ª Conferência da Academia da Latinidade, realizada entre os dias 19 e 21 de abril, em Baku. Perdeu uma ótima chance de ficar calado. Deu uma prova cabal de ignorância sobre o que acontece no país. Olha para o Brasil com um cinismo de certa academia européia, que acha muito natural que se seja um tanto corrupto no Terceiro Mundo. Certa feita, um outro francês, de envergadura muito maior, Jean-Paul Sartre, disse uma bobagem igualmente gigantesca. Defendeu que se escondessem os crimes do stalinismo para não tirar as esperanças da classe operária francesa. Touraine pede que se relevem os crimes do petismo em nome do suposto bem comum... A Folha escolheu o seguinte título para a entrevista: ' Sociólogo amigo de FHC dá apoio a Lula'. Não deixa de ter sua graça. Não se sabe se essa amizade é destacada pelo jornal para conferir autoridade a Touraine, para destacar o que seria uma contradição ou porque, afinal, faltaria um outro qualificativo que justificasse a entrevista do dito-cujo. Uma coisa é certa: FHC tem uma porção de amigos que não falam besteira, e há muita gente que fala besteira e não é amiga de FHC. Em suma: o que FHC faz ali?" No mesmo dia, no caderno Mais!, a Folha publicou um artigo de Jorge Castañeda (clique aqui para ler íntegra). Postei uma nota a respeito de seu texto também, conforme segue, igualmente em itálico. Chega a ser desesperadora a ignorância dos pensadores, também os de fora, sobre a natureza do governo Lula. Castañeda é quem comete o erro mais comum em relação ao presidente brasileiro e ao PT. Repete, diga-se, o do Departamento de Estado dos EUA quando confrontado com o clepto-stalinismo que tomou conta do Brasil. A Casa Branca está convencida, com acerto, de que Hugo Chávez pode representar um grande mal para a América Latina. Mas pôs na cabeça, de maneira torta e contra os fatos, que o PT é uma alternativa ao autoritarismo chavista. A suposição soma desinformação pura e simples com o nominalismo convertido em economia política. Os Poderes da República nunca desceram tanto no decoro. Sólida, a democracia resistiu bem até aqui, o que não significa que resistirá, inabalável, por mais quatro anos e sete meses. Chávez calou o Parlamento na porrada; o PT tentou comprá-lo; Chávez submete a economia à mão de ferro estatal; o PT exibe a musculatura do enorme poder do Estado que ainda há no Brasil e consegue minar qualquer oposição organizada ao governo nos setores da elite empresarial. Uma parte se borra de medo do petismo; a outra quer fazer negócios e lucrar, seja lá qual for o sistema. O dinheiro mudou de mãos muito rapidamente nos últimos anos. A "elite branca" que aí está (como poderia dizer o governador Cláudio Lembo) não dá a menor pelota para alguns princípios. O equívoco de Touraine, como já observei, é de outra natureza. Ele pertence àqueles setores da esquerda intelectual social-democrata européia que acham quase um milagre que alguém como Lula tenha um discurso articulado, ande sobre duas pernas e saiba usar o polegar opositor. Por incrível que possa parecer, ainda se trata do velho olhar do colonialismo europeu para o estranho mundo da América. A rigor, os franceses, até hoje, não entenderam nem mesmo os EUA. É uma pena que o gênio de Tocqueville não tenha feito escola na Pátria das Luzes. A entrevista de Touraine é asquerosa. Chegar aos 80 para dizer aquele tanto de asneiras é deprimente. Com que então o PT é um partido que não aceita a democracia, tem corte stalinista, e Lula sempre soube de tudo, mas a única decisão racional é reelegê-lo? Ainda bem que Touraine não foi contemporâneo do marechal Pétain e da República de Vichy, não é mesmo? Talvez dissesse que o regime da França "não ocupada" era colaboracionista, violento, anti-semita e ditatorial, mas, vá lá, ainda era melhor do que a pura e simples ocupação nazista... Sobre Pétain, disse então De Gaulle: "A velhice é um naufrágio". Não direi o mesmo de Touraine. Certa social-democracia é que é um naufrágio. Os equívocos se explicam. Touraine até se vira em português, mas mal. Castañeda não dá bola à imprensa brasileira. Os mexicanos só se interessam pelo que acontece na América e, secundariamente, na Europa. Quando essa gente tem de se informar sobre o Brasil, apela a seus colegas de academia brasileiros — a larga maioria é petista por opção ideológica, interesse, ignorância ou preguiça. FHC deve ser um dos poucos sociólogos no Brasil que sabem a diferença entre taxa Selic e spread bancário. No entanto, a intelectuália ocupa os jornais, as TVs a cabo e os cadernos de cultura com suas "análises", onde Lula, quase invariavelmente, figura como um líder operário — como o classifica, diga-se, Touraine. Tá tudo dominado. Circula na internet uma versão do Hino Nacional composta por supostos candidatos a cantores no programa Ídolos, do SBT. Não sei se é verdade ou se é uma dessas montagens da criativa molecada que mexe com a internet. Deve ser real. Clique aqui para ouvir e depois se lembre de que temos o Apedeuta no poder. Sabem o pior de tudo? Como bem lembrou um amigo meu, a versão criativa do povo consegue ser melhor do que o Virundum original. Onde já se viu escrever "de um povo heróico o brado retumbante"! E adorei o país banhado por "raios frígidos", que passa a ser, para mim, uma pequena pérola da poesia crítica contra o Brasil. É isso aí. Os raios no país são frígidos, e os nossos democratas são brochas. Por que tanto? O fato de estar trabalhando em casa, contribuindo com o site e com a revista à distância — o que a tecnologia permite —, me predispõe a falar do assunto. Enquanto escrevo a respeito, imagino a cicatrização se fazendo, de dentro para fora, as membranas rompidas se colando, os fios das costuras internas sendo abraçados, "fagocitados", pelos tecidos, de modo que um pouco da humana ciência fica para sempre incorporado a mim, como um valor agregado. Também é verdade que ter passado por uma experiência, vá lá, difícil, traumática, fez com que me sentisse, huuummm, demasiadamente humano, vendo em cada homem meu irmão hipócrita, meu semelhante, parafraseando Baudelaire, com alteração nada ligeira. E isso tudo, se querem saber, é bem mais divertido do que falar sobre política, Touraine, Castañeda ou as bobagens pantagruélicas que se lêem e se ouvem na mídia. Talvez, leitor, esteja ensaiando um novo estilo e tateando outros assuntos. Estou doido para deixar Lula a cargo dos especialistas da USP (alguns, claro, devem ser poupados dessa pena). Eles se merecem. No país dos raios frígidos. [reinaldo@primeiraleitura.com.br] |
Entrevista:O Estado inteligente
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terça-feira, maio 30, 2006
Touraine, Castañeda e o Virundum Por Reinaldo Azevedo
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