Entrevista:O Estado inteligente

domingo, maio 28, 2006

A crise é de autoridade

oesp

Paulo Renato Souza

Os fatos graves ocorridos em São Paulo há duas semanas, com as ações
de uma facção criminosa desafiando o poder do Estado, vêm merecendo as
mais diversas interpretações - algumas simplórias, como a que tudo
atribui às falhas de nosso sistema educacional - e ensejando um
oportunismo político lamentável de alguns candidatos. Poucos
destacaram que a onda de violência é a culminação de um processo de
erosão da autoridade pública que se vem agravando há pelo menos um
ano, quando os escândalos de corrupção começaram a vir a público. A
avalanche de denúncias, confissões e comprovações de delitos cada vez
mais graves envolvendo o uso do dinheiro público, o tráfico de
influências e a compra de apoios no Congresso teve sua culminância na
denúncia que o procurador-geral da República fez ao Supremo Tribunal
Federal envolvendo 40 notórias personalidades de nossa República.

Quando as primeiras evidências surgiram, há um ano, eu afirmei neste
mesmo espaço: "Em vez de buscar bodes expiatórios, criar conspirações
mirabolantes ou reafirmar pateticamente ter uma história de campeão
nacional da ética pública, espera-se que o presidente assuma com
serenidade e firmeza a liderança política do País para apurar com
rigor os fatos denunciados, punir os responsáveis e superar a crise
provocada por seus companheiros e aliados. Que aproveite a crise para
induzir o Congresso Nacional à apreciação imediata da reforma política
que a sociedade reclama - que contemple, além dos mecanismos de
financiamento aos partidos, o voto distrital, a fidelidade partidária
e exigentes cláusulas de barreira que limitem a escandalosa
proliferação de partidos políticos. Que aproveite a crise para um
choque de transparência e eficiência em seu governo."

O que aconteceu ao longo desse ano? O presidente optou por uma atitude
patética ao negar que tivesse conhecimento dos fatos e se recusando a
investigá-los seriamente; alguns de seus colaboradores mais diretos e
situados no topo da hierarquia governamental ajudaram quase à luz do
dia a encontrar subterfúgios e proteger outros membros do governo; um
poderoso esquema de comunicação e formação de opinião pública passou a
difundir - com sucesso, diga-se de passagem - a tese de que todos
esses crimes eram comuns na história política de nosso país; muitas
lideranças intelectuais e artistas encamparam essa tese e passaram a
declarar seu apoio ao governo, apesar de tudo; o ex-chefe da Casa
Civil, apontado na denúncia do procurador-geral como o líder desse
esquema de corrupção, voltou abertamente a coordenar a campanha de
reeleição do presidente; o plenário da Câmara dos Deputados deixou de
punir a maioria dos parlamentares implicados em delitos comprovados
por eficientes apurações realizadas por algumas de suas comissões; o
Supremo distribuiu fartamente habeas-corpus para evitar depoimentos de
pessoas com claras acusações e fortes indícios de práticas de crimes;
alguns acusados se negaram a assinar o juramento de dizer a verdade em
seus depoimentos nas CPIs e nada lhes aconteceu; entidades como o MST
não só aumentaram suas ações de invasão de propriedades como também
destruíram importantes laboratórios de experimentos agrícolas. Ou
seja, liderada pelo governo, grande parte do aparato público e da
própria sociedade brasileira passou abertamente a considerar naturais
a transgressão à lei e a impunidade para diversos tipos de crimes
gravíssimos. Depois de um ano deste verdadeiro festival de
criminalidade, ninguém está preso e muitos dos principais acusados nem
sequer foram importunados pelos órgãos competentes.

Num quadro como esse, os atos de verdadeira insurreição armada
praticados pelo crime organizado para protestar contra a transferência
de alguns líderes para penitenciárias de segurança máxima passam a não
ser tão exóticos ou inconcebíveis. Em face do que notoriamente
acontece nas mais altas esferas do País, o que não esperar da cabeça
de um chefe criminoso para fazer valer seus desígnios?

Em outras palavras, o princípio e o exercício da autoridade pública em
defesa do cumprimento da lei, que a duras penas nossa sociedade lutava
por fazer valer, desmoronaram ao longo dos últimos 12 meses. É
acaciano afirmar que a sobrevivência e o aperfeiçoamento do regime
democrático exigem o respeito à lei e dependem do exercício da
autoridade para fazer cumpri-la. Fraquejar nesse exercício leva a
conseqüências funestas que acabam no autoritarismo, que pode descambar
para um regime ditatorial. Um mês depois de publicar o artigo acima
mencionado, em julho do ano passado, este espaço trouxe outro artigo
meu chamado Democracia ameaçada. Nele eu já assinalava que esse era
justamente o aspecto mais importante da chamada "crise do mensalão".
Hoje, não apenas está mais claro que meus temores eram totalmente
fundados como também que a ameaça à democracia é mais próxima e grave
do que então imaginava.

Em face de tudo isso, nossa sociedade parece estar possuída de uma
estranha letargia. É como se tivéssemos perdido a capacidade de
indignação e de reação que já demonstramos possuir no passado diante
de fatos até menos graves. Sem querer ser piegas, é hora da união dos
democratas para salvar o regime. Devemos começar por exigir o estrito
cumprimento da lei e a punição de todo e qualquer crime. Como sempre
acontece nas horas mais difíceis que as nações atravessam, é preciso
voltar aos princípios mais básicos e simples que fundamentam a sua
existência para promover a sua ressurreição.

Recentemente editei o livro Visão de Futuro, que reúne os meus
principais artigos publicados neste Espaço Aberto até o final do ano
passado. Os interessados podem solicitá-lo, sem custo, pelo telefone
(11) 3057 0505 ou pelo e-mail paulo.renato@isd.org.br.

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