o globo
Fui ao Parque Grande Sertão Veredas certa de que um livro de 50 anos não era exatamente uma notícia. Achei que, com a equipe do Bom Dia Brasil, faria uma reportagem sobre a poesia do livro que captura para sempre o coração de quem ouve a sua música. Mas que novidade poderia encontrar em uma história de meio século? O fato é que havia uma bela notícia, que fomos descobrindo devagar.
O Brasil saiu na "The Economist" numa reportagem constrangedora. "Um país de não-leitores"; sobre a falta do hábito de leitura. Já era notícia o fato de que, num país assim, o aniversário de um livro estivesse sendo tão comemorado. Mas havia mais.
O Parque Grande Sertão tem 230 mil hectares entre Minas e Bahia. Nas beiradas do parque, só há soja e capim braquiária, que plantam para vender para o Pará. Ameaçam o cerrado e exportam a ameaça para a Amazônia. O Ibama tem só um funcionário lá. Até os guardas são funcionários da Fundação Pró-Natureza, a Funatura, cedidos ao Ibama. Andando pelo parque, encontramos dois deles, João Cofocó e Saint Claire, a cavalo, patrulhando.
O parque é lindo e emociona. Guarda os locais que a gente lê no livro. "Águas, águas, o senhor verá." Tem esse bem precioso, objeto de cobiça dos fazendeiros ao redor. "O Rio Carinhanha é preto, o Paracatu moreno, o meu, em belo, é o Urucuia. Paz das águas." Os rios vão formando as veredas, veredazinhas e a grande vereda. Elas embelezam e aliviam a paisagem. Surpreendem. São uma pausa para reflexão. "O sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar."
Aos poucos, a equipe foi sendo embalada pela música, palavras, belezas. A gente reconhecia os pontos, abria de novo o livro, filmava, gravava e se deixava contagiar. A terra é toda linda e frágil. Sem a cobertura do cerrado, ela mostra toda a fragilidade. "Areia que escapulia, sem firmeza, puxando os cascos dos cavalos para trás."
Anderson, que cuida de uma lojinha que vende artesanato local, foi com a gente numa parte da viagem. No caminho, abriu o livro "Grande Sertão: Veredas" com muita intimidade e disse:
— Olha, aqui fala de Januária, onde eu nasci.
O funcionário do Ibama que nos acompanhou, Kolbe Von Braun Soares Santos, nome germânico desmentido pela cara brasileira, também achava trechos com facilidade. Mais intimidade, claro, tinha Cesar Victor, da Funatura. Quando encontramos um cânion, todo verde, os três acharam no livro rapidamente onde é que estava a referência àquele ponto:
— Este é o Vão do Buraco.
Na Serra das Araras, mulheres num ginásio bordavam nas almofadas frases, poesias. "Viver é muito perigoso e o correr da vida embrulha tudo" ou "Eu era de ninguém. Eu era de mim mesmo". Elas sabem do livro de ouvir dizer. Reconhecem frases e estão à procura de outras. As frases são seu ganha pão.
Nas cidadezinhas que cruzamos, sentamos assim aleatoriamente com as pessoas. A prosa sem rumo parecia sempre familiar.
— Eu morava na cabeceira do Rio Pardo e trabalhava num galho da Ribeira. Mas os fraternos é tudo daqui. Tudo enterrado aqui e eu pra ser enterrado mais eles — contou seu Libânio, sentado na porta da sua casa de adobe na Serra das Araras.
— Eu sei tudo; esse Antonio Dó morava ali ó. Antônio Dó era matador, mas matava apenas por precisão — contou seu Leôncio, de 96 anos, que conheceu o jagunço e soube de Felão, o capitão da Polícia Mineira que deu cabo dele e de um povoado inteiro.
Num lugarejo na beira do Ribeirão da Areia, onde chegamos ao fim do segundo dia, era festa. Num salão com telhado e sem parede, aberto para o verde, mulheres dançavam e os homens tocavam rabeca, viola, instrumentos de percussão. Seu Jonas tocava uma música; um sapateado que ele compôs.
"Vou falar uma verdade do nosso grande sertão. Meu grande sertão veredas é das Minas Gerais, em divisas com a Bahia nas fronteiras de Goiás. É um parque da natureza e selva dos animais. Quem vem no grande sertão nunca se esquece não."
Inesquecível aquele som da viola, a rabeca manhosa. Seu Jonas, contando a história do livro:
— Guimarães Rosa tinha vontade demais de conhecer o mundo. A parte do Nordeste, as Minas Gerais. Tinha uns amigos tropeiros lá da terra dele que fazia esse sertão. Foram os tropeiros, botou o animal dele. Ia num caderno escrevendo o roteiro. Perguntava pelo nome dos rios, como se chama essa vereda, essa ribeira. Anotava tudo. Aí ele escreveu esse livro e esparramou pelo Brasil.
José Wilson, de pouco mais de 20 anos, declamou para nós trechos do livro. Tinha o seu exemplar todo marcado. Sabia o sentido das palavras. "Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não." Eu comentei com ele que certas palavras — "prascóvio", por exemplo — eram difíceis. E ele explicou: "Prascóvio quer dizer ignorante."
Anoitecia no sertão, a lua prata crescia atrás do buriti; ao fundo, seu Jonas tocava, acompanhado da rabeca; dançavam todos no Centro Cultural Grande Sertão "de Veredas", quando eu entendi a notícia. O livro foi além: virou parque, virou artesanato, música, centro cultural. O livro virou encantado. Estava em toda a parte. Estava dentro da gente.
Essa deveria ser uma coluna de economia, mas o senhor tolere, isso é o Sertão.
Entrevista:O Estado inteligente
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