Eles vestirão a camisa amarela
e cantarão o Hino, mas para eles
o Brasil é uma realidade distante
Fred veio em seu próprio carro, desde a França, deslizando pelas magníficas estradas européias. O grupo de Milão – Kaká, Cafu, Dida – chegou junto, também de carro, ao cabo de um confortável passeio de 200 e tantos quilômetros. Ronaldo desembarcou de jatinho. Ele tinha viajado com a namorada para Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, e, como de lá seria complicado voltar a tempo em avião de carreira, alugou um. Outros vieram do Brasil, país ao qual por vezes lhes ocorre dar um pulo, entre um compromisso e outro. O ponto de encontro era Weggis, à beira do Lago de Lucerna, na Suíça. Era a seleção brasileira reunindo-se para a Copa da Alemanha. Mas, se se quiser interpretar como um clube de milionários atendendo ao chamado para sua reunião quadrienal, também se estará certo.
A nossa será possivelmente a seleção mais bem paga na Alemanha. Nunca um Brasil tão rico se apresentou a uma Copa do Mundo. Mas, fora detalhes como vestir a camisa amarela e cantar o Hino..., é o Brasil mesmo o que eles representam? Seus componentes são brasileiros, mas vivem a uma distância segura do PCC. Notícias de mensalão e de máfia das ambulâncias chegam a eles como ecos de um outro mundo. Não por acaso, o grupo se reuniu na Suíça, onde se pode estacionar o carro sem trancar as portas e nunca se registrou um caso de bala perdida. Ali se hospedou no Park Hotel Weggis, sediado numa nobre edificação do século XIX, e fechado para atendê-lo com exclusividade. O ambiente belle époque é o da Montanha Mágica, de Thomas Mann, sem a tuberculose.
Os milhões que hoje em dia giram em volta da seleção brasileira ilustram a evolução do futebol, em tempos de capitalismo e meios de comunicação globalizados. Em sua época, Pelé amealhou fortuna que equivaleria à de um craque de segunda linha hoje. Mas não é bem a riqueza o que empresta um caráter único à seleção de 2006. É antes sua característica de legião estrangeira. Em 2002, dos 23 convocados para a Copa do Japão e da Coréia, os jogadores que atuavam no Brasil ainda eram maioria – treze contra dez. Já estávamos numa fase de exportação maciça de craques, mas ainda assim, e ainda que por pouco, os de casa eram maioria.
Entre os 23 de agora, só dois jogam no Brasil, Rogério Ceni e Ricardinho. Os outros 21 são profissionais acostumados a outras línguas e a outros códigos. Num programa recente, o canal SporTV exibiu Kaká a circular por Milão, conduzindo seu carro e mostrando a cidade para o repórter, a seu lado. A certa altura ele pára diante do Convento de Santa Maria delle Grazie e explica: "É aqui que fica o Cenacolo". Ele disse "Cenacolo", como os italianos, e não "Santa Ceia", como os brasileiros se refeririam à célebre obra de Leonardo da Vinci. Mais adiante, num restaurante, Kaká explicou que todos os cardápios sugerem uma entrada, depois um primo piatto, depois um secondo, mas que não se é obrigado a comer tanto. Por toda parte ele era saudado efusivamente. Movimentava-se pela cidade com a desenvoltura de quem nasceu lá.
A fuga dos jogadores brasileiros para o exterior decorre de circunstâncias em parte inevitáveis e em parte evitáveis. A parte inevitável é a atração de mercados futebolísticos milionários como os da Espanha, Itália, Inglaterra e Alemanha. Mas há bons jogadores brasileiros atuando até na Ucrânia e na Turquia. Isso tem a ver com a parte evitável. Se o futebol brasileiro fosse mais bem administrado, e mais honestamente, os clubes teriam força para defender seus jogadores, pelo menos, do assédio turco ou ucraniano. A soma dos fatores inevitáveis com os evitáveis empurrou o país para a condição de exportador de matéria-prima. Da mesma forma como nos tempos coloniais éramos exportadores de cana-de-açúcar ou de ouro, hoje somos de futebolistas. O Brasil regrediu gostosamente à condição colonial – claro que com grandes lucros para muita gente, senão não seria assim.
Os jogadores são produtos dessa situação. Os mais festejados, como os da seleção, cercados de atenções e do conforto que a boa remuneração proporciona, acabam por se dar tão bem no novo ambiente que o antigo fica lhes parecendo um castigo. Ronaldo já avisou que ao deixar o futebol continuará a viver na Europa. Ele se acostumou, e não agüentaria mais morar no Brasil.
Nada contra, nem ao dinheiro que ganham, nem ao modo de vida. O dinheiro eles têm mais é que ganhar mesmo, estrelas de primeira grandeza de um espetáculo de massa que são. Quanto ao modo de vida, nada mais justo do que, para usar o mais simples dos argumentos, querer viver em lugares onde se circula à noite sem medo e se pode deixar a mãe em casa sem o risco de ela ser seqüestrada, como aconteceu com a mãe de Robinho em Santos. Mas que é estranho ter uma trupe de exilados como seleção, isso é. Eles cantarão o Hino Nacional e serão saudados com bandeiras verde-amarelas, mas para eles o Brasil é uma realidade distante, sem muito a ver com as questões do dia-a-dia.