O GLOBO
Encantadora leitora, gentil leitor, é com insopitável júbilo que finalmente tenho assunto que não os fornecidos pelo noticiário desalentador que a gente pega nos jornais e nos acontecimentos de que ouve falar. Desta forma, não me vejo obrigado a comentar bandidagens, vigarices, falcatruas, escândalos, chacinas e assemelhados, que fazem parte tão inescapável da nossa dieta de notícias. Como talvez alguns de vocês já saibam, vou à Copa, contribuir para a excelência da cobertura esportiva deste jornal, com meus comentários sempre valorizados por um inexcedível conhecimento do rude esporte bretão. Além disso, como todo o Brasil sabe (bem, pelo menos toda Itaparica sabe), sou craque do passado, unindo, pois, o prático ao teórico. Claro, sou manjado como o chato da delegação, que pergunta tudo ao pessoal especializado, mas não é por ignorância, é somente para ajudá-los, checando se eles realmente estão por dentro do que se passou dentro das quatro linhas, esse pessoal é muito ingrato.
Ainda faltam alguns dias, mas a Copa, nas próximas semanas, será o assunto. E tomo a liberdade, para abrir esta série, de lembrar algo que já contei aqui, mas, por se tratar de fato histórico de relevância e alguns de vocês poderem ter perdido a sensacional narrativa, vou contar de novo. Trata-se de como meu pai e eu, anonimamente em Salvador, trouxemos para casa o primeiro caneco brasileiro, a falecida taça Jules Rimet, aqui furtada e derretida logo após sua conquista — mas lá vou eu com essas implicâncias outra vez, cala-te, boca. Fomos nós dois os responsáveis, através da conjuminação de inúmeros e complexos fatores, por aquela vitória sem par na história do nosso futebol.
O segundo jogo, no qual empatamos com a Inglaterra, foi que abriu nossos olhos. Meu pai tinha ouvido a narração do primeiro jogo, em que ganhamos de três a zero para a Áustria, com seu pijama azul, uma garrafa de uísque Cavalo Branco e um balde de gelo. E, na hora do Hino Nacional, tinha se perfilado em posição de sentido. Só que, para isso, ele, que era surdo tonal e nunca conseguiu nem cantar nem assoviar na vida, além de não distinguir melodia nenhuma de outra (só percebia que algumas eram "mais ligeirinhas"), tinha que me ordenar, em meio à barulhada da transmissão em ondas curtas, que lhe comunicasse a hora em que estavam tocando o Hino, porque ele mesmo não conseguia saber. E, finalmente, no momento em que Nilton Santos fez seu gol, eu estava dando descarga no banheiro.
Bem, a quase trágica verdade é que nada disso foi observado no segundo jogo e amargamos aquele empate agoureiro. Afinal, tínhamos sofrido o indelével golpe de 50 e o fracasso de 54, já estávamos meio cabreiros com esse negócio de Copa. Meu pai, homem acostumado a grandes decisões e atitudes firmes, não teve dúvida. Determinou que lhe dessem o mesmo pijama, comprou uma garrafa de Cavalo Branco idêntica à do jogo com a Áustria, botou o balde de gelo na mesma posição, sintonizou a mesma rádio na vitrola grandona da sala e outra rádio no aparelhinho que ficava num quarto, me ordenou que envergasse a mesma camisa de tricoline (quem não sabe o que é camisa de tricoline não passa de um(a) fedelho(a) mal saído(a) dos cueiros), lembrou que eu tinha de avisar a hora em que começassem a tocar o Hino Nacional e, finalmente, baixou as instruções finais, muito simples de entender para qualquer baiano.
— Você fica aqui comigo, em pé, do mesmo jeito da hora daquele gol de Nilton Santos. Na hora em que o time deles for para o ataque, você corre e baixa o volume do radinho e só aumenta na hora em que o Brasil reagir, mas não mude de estação! E, na hora em que o Brasil for para o ataque, você calcula o momento de mais perigo pela voz do locutor, vai lá dentro e dá descarga imediatamente!
— Mas aí eu vou perder todos os lances do ataque.
— E você acha isso mais importante do que ganhar a Copa? Você quer que o Brasil seja vítima de sua irresponsabilidade? Você quer carregar esse peso na consciência pelo resto da vida? Além de tudo, não tem conversa: é baixar o radinho na hora do ataque deles e dar descarga na hora do nosso ataque, nem mais um pio!
Como o velho não era muito do tipo que gostava de ser contrariado, não dei mais um pio e acho que corri mais do que o Zagallo, que era chamado de Formiguinha, porque cruzava o campo o tempo todo, saindo lá de trás e levando a bola para a frente. Mas foi batata. Um famoso computador soviético, na época chamado de "cérebro eletrônico", tinha previsto a derrota brasileira para a então URSS. Com dois minutos de jogo, Garrincha já tinha entortado uns cinco russos e tacado uma bola na trave.
— Atenção nessa descarga — reclamou meu pai. — Se você tivesse sido mais atento, Garrincha fazia o gol, você perdeu o tempo da bola.
Quem quiser que pense que é moleza acompanhar o tempo da bola correndo para o banheiro para dar a descarga precisamente na hora certa. Reivindiquei um radinho de pilha, para poder ser mais preciso, mas o velho negou, tratava-se de um elemento estranho ao esquema já traçado, que podia revelar-se extremamente danoso aos destinos nacionais. Acabei a maior parte dos jogos exausto, mas a sucessão de vitórias é conhecida. País de Gales (um a zero suado, com um gol fantástico de Pelé — e eu tomei um esbregue de meu pai por ter tripulado a descarga mal quase o jogo todo), França, Suécia, Copa! E vamos lá outra vez. Não estarei aqui para dar as descargas, mas confio na vigilância dos compatriotas. Espero que o suprimento de água da cidade agüente — o que é um dia sem banho, mas com a Copa na mão?
Entrevista:O Estado inteligente
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