Democracia |
Artigo - |
O Globo |
30/5/2006 |
Entre os críticos dos EUA, virou rotina debochar do seu anunciado apoio à instalação de regimes democráticos no mundo. Diante da vitória do grupo terrorista Hamas nas eleições palestinas, da radicalização do Irã depois da vitória de Mahmoud Ahmadinejad e do que ocorre hoje na Venezuela, com Chávez, e na Bolívia, com Evo Morales, é comum ouvirmos que o feitiço virou contra o feiticeiro: "Os EUA falam em democracia, mas, quando o resultado das urnas lhes desagrada, torcem o nariz", dizem. Quando Condoleeza Rice diz que uma democracia não se resume a eleições, fazem piada. E, no entanto, Condoleeza está com razão. Certamente, não existe democracia sem eleições, mas o alicerce de todo regime democrático é a crença de que a liberdade é um valor absoluto, inquestionável, direito inalienável de todos os homens. E ela vem sempre desacompanhada de adjetivos: não pode haver uma liberdade burguesa, uma liberdade socialista, uma liberdade proletária, uma liberdade mais ou menos. Liberdade, enfim, é o direito mais básico que uma democracia tem de garantir. Portanto, democracia alguma no mundo pode admitir movimentos políticos cujo programa preveja o cerceamento da liberdade. Trata-se de um princípio básico de autodefesa. É por isso que em democracias consolidadas é impensável admitir que partidos com propostas totalitárias participem de eleições. Na Alemanha, apenas para citar um exemplo, o partido nazista, seus símbolos e o livro-programa de Hitler, "Minha luta", são proibidos. Também no Reino Unido, nos EUA, na França etc., não podem avançar partidos que prevejam a destruição dos princípios democráticos, que defendam o fechamento do Congresso, a mudança radical no relacionamento entre os poderes, o redesenho das leis eleitorais de modo a perpetuar um partido no poder. Eleição nenhuma dá direito a que a liberdade seja restringida. Porque as gerações atuais, mesmo dispostas a abrir mão da liberdade, não podem tirar esse direito das gerações futuras. Esse é o princípio que rege as democracias. O que explica, então, Chávez, Hamas e movimentos semelhantes é o pouco valor dado ao conceito de liberdade em grande parte dos países. A rigor, o que se tem na Autoridade Nacional Palestina não é uma democracia, mas apenas o povo votando. O Hamas é porta-voz de uma ideologia religiosa radical, que prevê a instalação de uma teocracia, em que valerá não a vontade do povo, mas a vontade de Deus, obviamente interpretada por um grupo de religiosos pretensamente iluminados. Num regime de fato democrático, sua participação num processo eleitoral seria indevida, porque seu programa de governo é incompatível com a democracia. Não há, portanto, nenhuma incoerência em apoiar a democracia e repudiar a vitória do Hamas. Chávez é a mesma coisa. Chegou ao poder numa eleição democrática, em 1998, mas os passos que tomou dali em diante foram ilegítimos. Eleito com 56% dos votos, mas numa eleição cuja abstenção foi de 40% (à época, o voto era obrigatório), Chávez encontrou um Congresso oposicionista, eleito democraticamente apenas um mês antes. O que fez? Tratou de planejar a eliminação daquele Congresso, convocando, ilegalmente, um plebiscito para autorizá-lo a convocar uma Constituinte. O Congresso tentou resistir, mas uma Suprema Corte titubeante, para agradar a Chávez, acabou não somente autorizando o plebiscito, mas dando também ao Executivo o direito de ditar as regras eleitorais, caso a Constituinte fosse aprovada. Com regras feitas de molde a lhe garantir a vitória, Chávez teve a sua Constituinte, e, de lá para cá, sempre com índices de abstenção altíssimos, algumas vezes superiores a 60%, e com regras sempre feitas para lhe beneficiar, foi "vencendo" eleições e mudando o país a seu bel-prazer. Isso não é democracia, mas um governo plebiscitário, que cerceou a liberdade de imprensa e viciou o processo eleitoral. O Irã é outro exemplo. Muitos justificam as atitudes do presidente Mahmoud Ahmadinejad, porque ele foi eleito "democraticamente", mas se esquecem de que ali nada é democrático, já que o Irã é uma teocracia. Um grupo de religiosos que comanda o país com mão-de-ferro escolhe os candidatos que podem disputar uma eleição. Assim, fosse quem fosse o "eleito", o programa não seria dele, mas dos ayatolás. Caso o "eleito" se desvie, será "legitimamente" deposto. Se ali não há liberdade, a democracia é apenas uma aparência. De Evo Morales não se pode esperar boas coisas. Uma Constituinte já está a caminho, e ele já se movimenta para tê-la sobre controle e moldar o país segundo os seus planos. A liberdade, ferida, tornará aquele país um simulacro de democracia. Por tudo isso, é bobagem dizer que os EUA querem uma democracia desde que os eleitos façam o que eles querem. Não se trata disso. Em novembro de 2003, Bush fez um discurso histórico: "Sessenta anos com o Ocidente relevando a falta de liberdade no Oriente Médio, e se acostumando a ela, não fizeram nada para nos proteger. No longo prazo, a estabilidade não se consegue à custa da liberdade." Desde essa autocrítica, o que os EUA parecem querer para os outros é o que há mais de 200 anos praticam em casa: uma democracia em que ninguém tenha o direito de disputar o direito de corrompê-la. Assim como o nazismo é proscrito na Alemanha, é absolutamente coerente com propósitos democráticos imaginar democracias no Oriente Médio que sejam vacinadas contra projetos teocráticos. Isso é autodefesa. Nós, que vivemos num regime democrático há apenas poucos anos, temos de ter isso muito em mente. É preciso que todos entendamos as regras do jogo, e que o Congresso, de um lado, e a Justiça, de outro, estejam sempre atentos para não deixar que algum aventureiro queira usar a democracia para restringi-la. |
Entrevista:O Estado inteligente
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