Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, junho 13, 2005

Mais uma bravata



EDITORIAL
O Estado de S. Paulo
13/6/2005

Sob a alegação de que 'os interesses de saúde pública e da vida estão acima dos direitos industriais', a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou o projeto de um deputado petista, com apoio do Ministério da Saúde, que torna livre de patentes os medicamentos de combate a aids. O objetivo é reduzir seus preços, dispensando os laboratórios nacionais de pagar royalties às multinacionais do setor farmacêutico. Como foi votado em caráter terminativo, o projeto será enviado diretamente ao Senado.

Nos Estados Unidos, cinco deputados americanos e o exsecretário de Defesa Frank Carlucci, na defesa dos interesses das empresas do seu país, pediram ao governo Bush a aplicação de sanções comerciais contra o Brasil, caso o Senado aprove o projeto e o presidente Lula não o vete. Em ofício ao responsável pela política de comércio exterior dos Estados Unidos, Rob Portman, com cópia ao nosso embaixador em Washington, eles lembram que o Brasil está na 'lista de observação' americana de países que não protegem a propriedade intelectual. E questionam a legalidade do projeto brasileiro, alegando que as regras da OMC que autorizam quebra de patente só poderiam ser usadas por países pobres. Esse não seria o caso do Brasil, que figura entre as 15 maiores economias do mundo. Como as sanções americanas poderão atingir setores industriais nacionais competitivos no mercado externo, caso Bush ceda às pressões do Congresso, Lula tem de agir com cuidado. A aprovação de um ingênuo projeto de inspiração 'politicamente correta', formulado por um deputado de primeiro mandato com o apoio de ONGs e do Ministério da Saúde, põe em risco uma importante vitória do Brasil em matéria de atendimento a aidéticos, obtida em 2001 pelo então ministro da Saúde, José Serra.

Em sua gestão, após criticar a atuação dos laboratórios internacionais, Serra introduziu em nossa legislação a figura da 'concessão de licenciamento compulsório de patentes internacionais, em casos de emergência'. Como, segundo a lei, o laboratório que não atender a certas condições de preços e de fabricação de remédios antiaids em território nacional perde a exclusividade da patente, que pode ser cedida a um laboratório brasileiro, os Estados Unidos pediram à OMC a instalação de um painel arbitral para decidir se essa medida é legal. Àquela altura, o Brasil já distribuía gratuitamente aos aidéticos um coquetel composto por 12 medicamentos, gastando US$ 319 milhões anuais na produção interna de 8 deles e US$ 100 milhões na importação dos demais.

Em sua defesa, o governo brasileiro habilmente levou a questão à ONU e à Organização Mundial de Saúde (OMS), o que lhe permitiu amealhar amplo apoio internacional. Até conceituados acadêmicos de Harvard, como Jeffrey Sachs, chegaram a afirmar que, apesar da necessidade de respeitar as patentes para permitir aos laboratórios reinvestir seus lucros em pesquisa, 'os países pobres não deveriam pagar o mesmo preço que os países ricos'. Pressionados pela opinião pública internacional, alguns laboratórios reduziram o preço de venda de seus produtos em até 2,5 vezes.

Essas vitórias levaram Serra a propor aos organismos multilaterais uma resolução que, classificando como direito humano fundamental o acesso a medicamentos para aidéticos, institucionaliza a prática de preços diferenciados conforme o grau de desenvolvimento de cada país. Endossada por mais de uma centena de países, a proposta foi aprovada na ONU, na OMS e na própria OMC, o que levou os Estados Unidos a retirarem sua queixa contra o Brasil. Desde então, está em vigor um acordo pelo qual o Brasil se compromete a avisar antecipadamente as autoridades de Washington sobre eventuais licenças compulsórias de patentes detidas por indústrias americanas. É esse acordo que a decisão da Câmara atropela.

Por ter sido concebido sem levar em conta o que já havia sido acertado com os Estados Unidos, o projeto cria atritos desnecessários com esse país e é mais uma dessas bravatas que a sedução pelo politicamente correto e pela retórica anticapitalista costuma provocar. É por isso que Lula tem de vetá-lo.

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