Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 25, 2005

Irresponsabilidade aprovada

Irresponsabilidade aprovada

Conselheiros do Tribunal de Contas de São
Paulo ignoram parecer técnico e aprovam
contas de Marta Suplicy. É um escândalo


Fábio Portela


Em meio à pior crise política da história do PT e à divulgação de uma decisão judicial que a torna inelegível até 2008, a ex-prefeita Marta Suplicy (PT) passou a semana exibindo um sorriso vitorioso no rosto. O motivo: as contas de seu último ano à frente da prefeitura paulistana foram aprovadas pelo Tribunal de Contas do Município (TCM). O atual prefeito, José Serra, vinha travando um embate com a ex-prefeita ao afirmar que herdara dela um déficit de mais de 2 bilhões de reais. Marta (que deve recorrer da decisão que cassou seus direitos políticos, motivada pela contratação de uma ONG sem licitação) festejou o veredicto do TCM dizendo que ele encerra a polêmica travada com seu sucessor. Apenas um problema estraga a festa da petista: há muito o TCM perdeu as características de um tribunal isento para assumir as feições de órgão político – como prova relatório obtido por VEJA. Feito pelo corpo técnico do TCM, composto de profissionais especializados na análise de finanças públicas, o documento aponta graves irregularidades na gestão de Marta e recomenda a reprovação de suas contas. Os conselheiros do TCM, no entanto, optaram por passar por cima do calhamaço de 484 páginas, que consumiu seis meses de trabalho, e fazer justamente o contrário do que os técnicos recomendavam.

Alex Ribeiro/AE
OBRIGADA, COMPANHEIROS
A ex-prefeita Marta Suplicy: salvo-conduto do TCM


Não foi uma tarefa fácil. Para ignorar os cancelamentos de empenho feitos pela ex-prefeita no apagar das luzes de seu mandato, as afrontas cometidas contra a Lei de Responsabilidade Fiscal e o não-pagamento de parcelas da dívida municipal à União, os três conselheiros que votaram pela aprovação das contas tiveram de recorrer a uma série de expedientes matreiros e interpretações legais, no mínimo, heterodoxas (veja quadro). O único a votar pela rejeição das contas da petista foi o conselheiro Edson Simões. No texto em que justifica sua posição, ele diz que, se cada administrador público agisse como Marta, "estaria implantada a anarquia orçamentária" e a Lei de Responsabilidade Fiscal "estaria rasgada e sepultada".

O que explicaria a boa vontade por parte do Tribunal de Contas do Município em relação às contas da administração petista? A resposta é um segredo de polichinelo. É notório que a administração de Marta sempre teve benevolência ao tratar de assuntos de interesse do tribunal. Em 2001, quando a petista assumiu a prefeitura, o TCM estava sob fogo cerrado. Era investigado por uma CPI e enfrentava denúncias de mau uso do dinheiro público. Corria até mesmo o risco de ser extinto. Os vereadores acabaram decidindo que o melhor a fazer seria promover uma reforma administrativa que reduzisse os gastos do órgão. O projeto ficou parado na mesa da Câmara, mas uma nova versão dele surgiu em 2003 – e com duas diferenças capitais: havia sido preparado pelo próprio TCM e foi apresentado à Câmara pela prefeita. Aprovada com o apoio de sua base governista, a nova versão da reforma não cortou um empregado sequer nem reduziu salários – pelo contrário: incorporou gratificações aos vencimentos dos conselheiros e ainda aumentou o orçamento do tribunal, de 92 milhões de reais, em 2004, para 101 milhões de reais.



A camaradagem entre o Tribunal de Contas do Município de São Paulo e os prefeitos não é novidade. Ela alcançou o paroxismo com Paulo Maluf. Quando foi prefeito pela primeira vez, entre 1969 e 1971, Maluf doou ao tribunal o terreno onde ele funciona hoje e iniciou as obras da nova sede. O bom relacionamento foi sacramentado na segunda passagem de Maluf pela prefeitura, quando ele ergueu o anexo do TCM. O ex-prefeito sempre prestigiou o tribunal – que, por sua vez, nunca deixou de prestigiá-lo: as contas de Maluf tiveram aprovação unânime, apesar da enxurrada de denúncias que sempre o rondaram. Já a ex-prefeita Luiza Erundina recebeu tratamento bem diferente – que ela atribui, em grande parte, a um episódio ocorrido logo no início de seu mandato. A ex-prefeita disse a VEJA que, dois dias depois de assumir, foi procurada pelo então presidente do TCM, Paulo Planet Buarque. "Ele me entregou uma lista de exigências que incluíam a criação de centenas de cargos no tribunal. Não atendi", disse Erundina. Recebeu o troco: ao longo de seus quatro anos de mandato, a ex-prefeita teve as contas rejeitadas três vezes.



Marcio Fernandes/AE
EMPREGÃO
A sede do TCM de São Paulo: conselheiros têm mandato vitalício e salário de 12 847 reais

A existência do TCM já foi contestada em diversas ocasiões. Apenas duas cidades do país, São Paulo e Rio de Janeiro, têm tribunais próprios. Nas demais, as contas são avaliadas pelos tribunais estaduais. A justificativa é que as duas capitais possuem orçamentos gigantescos, que exigem análise particular. A decisão tem seu custo – e ele não é baixo: em São Paulo, a manutenção de um tribunal de contas municipal consome 1% do orçamento da cidade, o dobro do que era necessário há dez anos. O TCM ainda padece de um vício de origem: a escolha de seus conselheiros é necessariamente política, como ocorre nos tribunais estaduais. Em São Paulo e no Rio, os membros do conselho ora são indicados pela Câmara, ora pela prefeitura. Dos cinco conselheiros atuais do TCM paulistano, quatro são ex-vereadores (três pertenciam ao PMDB, partido que compunha a base aliada de Marta, e um era do PT). Ser conselheiro de um tribunal de contas é um bom negócio. Além de um ótimo salário (12.847 reais, o teto do funcionalismo público no Brasil), o cargo ainda tem a vantagem de ser vitalício. Isso mesmo: o conselheiro, indicado por suas boas relações políticas, fica no posto até morrer ou se aposentar. Empregões assim não são fáceis de encontrar. E, ao que parece, o TCM sabe responder com gratidão aos políticos que entendem isso.



Fotos Alan Marques/Folha Imagem e Nilton Fukuda/Ag. O Globo

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