Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, junho 28, 2005

Luiz Garcia :Falemos mal dos outros

o globo

Desencanto e indignação adoram companhia. Nestes dias em que o orgulho cívico nacional rasteja, talvez seja modesto consolo encontrar além-mar exemplos rebarbativos de politicagem oportunista. O episódio é de natureza bem diferente do que vemos por aqui, mas os picos de sórdida manipulação alcançam altitude parecida.


O último capítulo do caso de Terry Schiavo, nos Estados Unidos — uma mistura de tragédia pessoal e politicagem sórdida — não envolveu um só lobista, uma única mala cheia de dinheiro ou sequer segundos de gravações comprometedoras. Mas sob alguns aspectos pode até ser mais repugnante do que muito do que se tem visto e ouvido por aqui nos últimos dias. Nada se noticiou por aqui sobre o desenlace.

Terry foi aquela moça da Flórida que há 15 anos entrou em estado vegetativo. No ano passado, o marido iniciou uma batalha judicial contra seus pais, argumentando, com base em pareceres médicos, que a situação era irreversível — e a manutenção artificial daquela vida praticamente extinta era apenas a preservação de uma ilusão, da qual todos os protagonistas eram vítimas. Iniciou-se uma batalha judicial. Os pais sustentavam que ela era um ser humano funcional, que reagia a estímulos — e até sorria. Todos os pareceres científicos diziam o oposto, e a decisão final da Justiça foi favorável ao marido: a solução, tão humanitária quanto lógica, era desligar os aparelhos que mantinham vivo o organismo. Seis decisões da Suprema Corte dos EUA foram nesse sentido.

Poderia ser uma tragédia pessoal — mas os políticos entraram em ação. Tanto o governador da Flórida, Jeb Bush, como o seu irmão montaram uma operação legislativa na base do rolo compressor, para chamar a Washington com urgência deputados e senadores em férias, e conseguiram aprovar às pressas uma lei — dita humanitária, mas obviamente visando a agradar ao eleitorado conservador e fundamentalista que forma a espinha dorsal do governo Bush — proibindo o desenlace.

Nenhum argumento foi baseado em exame médico confiável: um dos mais enfáticos defensores da tese bushiana foi um senador republicano que baseou sua convicção no exame de um videoteipe. Chegou a dizer: "ela ri, sorri e tenta falar". Não faltaram mesmo fotos mostrando Terry supostamente sorrindo. Os tribunais resistiram e firmaram jurisprudência sobre o direito de interromper a alimentação que mantinha Terry em estado vegetativo. Assim se deu, e ela morreu em 15 de março passado.

Até poucos dias atrás, o circo político montado na Casa Branca conseguia manter a impressão, pelo menos no eleitorado extremamente conservador, que as forças do governo tinham travado o bom combate contra o materialismo ateu.

Mas faltava a autópsia, divulgada dias atrás. O veredicto: estado vegetativo irreversível, dano cerebral irrecuperável, cegueira. Seu cérebro tinha metade do tamanho normal. Ao contrário do que diziam seus pais, em seu desespero, e os políticos, em seu oportunismo, ela não sorria, não enxergava, não se comunicava de forma alguma. Ali não mais existia um ser humano, seja qual for a definição que se escolha. Era apenas um organismo mergulhado em sofrimento irreversível.

Foi um episódio clássico de fria — e certamente cruel — exploração política de uma tragédia humana.

Pelo menos, isso a gente não tem por aqui.

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