o globo
No dia 7 de agosto de 2004, escrevi e publiquei na minha coluna o seguinte:Esse governo do Lula tem duas cabeças: de dia, mostra-se liberal, democrático, ouvindo as opiniões da sociedade; mas, quando cai a noite, vultos embuçados se reúnem na sombra dos ministérios e gargalham: "Há... há... Democracia, o cacete!... Vamos controlar tudo, vamos "reeducar" esse governo burguês, porque o Lula está dominado pelos neoliberais!" (...)
O PT no poder age contra o próprio poder. O combate que se trava dentro do governo não é mais desenvolvimentistas versus monetaristas. Nada disso. O debate é ideológico e não programático. Agora, chegaram os "profissionais" do bolchevismo, com missões muito precisas para "mudar os rumos do operário vacilante que é o Lula". (...) Os "soviéticos" estão ficando impacientes e tentados a criar um atalho para um modelo mais "aventureiro". (...)
José Dirceu comanda este plano de ocupação ideológica da máquina pública, depois de brevemente interrompido pelo "contratempo" do Waldomiro. Luís Gushiken, de origem bancária, aparelhou o sistema dentro da Previ, Banco do Brasil e Banco Central.
Vemos as estatais controladas pouco a pouco pelos petistas, numa desmontagem da competência pela ideologia. (...)
Está começando uma "revolução dentro da revolução" nesse governo. Os "soviéticos" querem tomar o Palácio do Planalto, como em 1917. O ridículo é que já estão dentro.
Quando eu escrevi isso, há um ano, o Zé Dirceu disse para um amigo cineasta que eu estava louco. Não estava — vejo agora. O que aconteceu com este governo foi mais um equívoco na história das trapalhadas que a velha esquerda leninista, disfarçada dentro do PT, comete sempre. O fracasso é o grande orgulho dos revolucionários neuróticos. Pelo fracasso se constrói uma espécie de martírio enobrecedor, já que uma vitória hoje é impossível. Erraram com tanta obviedade, tanto desprezo pelas evidências de perigo, tanta subestimação do inimigo, que a única explicação é o desejo de serem flagrados. O martírio é uma vitória culpada.
Não quero bancar o profeta, mas qualquer um que tenha conhecido a turminha que está no poder hoje nos idos de 1963 poderia adivinhar o que estava para vir. Nos meus 20 anos, era impossível não ser "de esquerda". Havia o espírito do tempo da Guerra Fria, uma onda de esperança misturada com falta de cultura histórica. Eu, que era mais para o lado da poesia, fazia parte do chamado Grupo Vertigem, como nos apelidou um companheiro duro, ocupado das coisas "sérias" do Partidão. Para mim, o socialismo era uma plataforma quase estética, contra a feiúra do mundo, a vergonha da miséria, além do horror à irracional farsa política do Poder.
Nós queríamos ser como os homens maravilhosos que conquistaram Cuba, os longos cabelos louros de Camilo Cienfuegos, o charuto do Guevara, a "pachanga" dançada na chuva linda do dia em que entraram em Havana, exaustos, barbados, com fuzis nas mãos e embriagados de vitória.
A genialidade de Marx me fascinava. Um companheiro me disse uma vez: "Marx estudou economia, História e filosofia e, um dia, sentou à mesa e escreveu um programa racional para reorganizar a Humanidade." Era a invencível beleza da Razão, o poder das idéias "justas", que me estimulava a largar qualquer profissão "burguesa". Meu avô dizia: "Cuidado, Arnaldinho, os comunistas se acham "médiuns", parece tenda espírita..."
Eu não liguei e fui para os "aparelhos", as reuniões de "base" e, para meu desespero, me decepcionei.
Em vez do charme infinito dos heróis cubanos, comecei a ver o erro, plantado em duas raízes: ou o erro de uma burocracia sem rumo, uma patética tentativa de organização que nunca se completava ou, de outro lado, um delírio radical voluntarista. Ou o companheiro estava sendo "aventureiro" ou "provocador" ou então era oportunista, hesitante, pequeno-burguês ou sei lá o quê. Eu e outros "artistas" morávamos numa espécie de "terceira via" revolucionária, a via da poesia, do impossível sonho, e começamos a achar caretas ou malucos os nossos camaradas. Nas reuniões e assembléias, surgia também a presença rombuda da burrice. A burrice tem sido muito subestimada nas análises históricas. No entanto, ela é presença obrigatória, o convidado de honra: a burrice sólida, assentada em certezas. As discussões intermináveis acabavam diante do enigma: o que fazer? E ninguém sabia.
E veio a sucessão de derrotas. Derrota em 64, derrota em 68, derrota na luta armada, derrotas sem fim. Até que surgiu, nos anos 70, um homem novo: Lula, diante de um mar de proletários no ABC; finalmente as multidões de operários tinham aparecido.
Aí, começou a romaria em volta da súbita aparição do messias operário, o ungido. Lula foi envolvido num novelo de ideologias e regras, traumatizando de saída o que seria o PT.
Quando o Lula foi eleito, eu temia que aquela santa burrice que o cercava (pois ele é inteligente) o prejudicaria. Eu não estava errado, mas não imaginava que esse oportunismo misturado com estupidez fosse tão longe.
E hoje, vemos mais uma "revolução " fracassada; não uma revolução com armas ou com as antigas massas sindicais do ABC de Lula, mas uma revolução feita de malas pretas, de dinheiro subtraído de estatais. Hoje, vemos o final dessa epopéia burra, vemos que a estratégia de Dirceu e seus comparsas era a tomada do poder pelo apodrecimento das instituições burguesas, uma espécie de "gramscianismo pela corrupção" ou talvez um "stalinismo de resultados".
E Lula ficou sozinho de novo, tão sozinho como surgiu nos anos 70, só que em vez do esperançoso líder, ficou um símbolo ferido, carregando nas costas os cadáveres da aventura em que o meteram.
Agora, Lula terá de superar obstáculos: agüentar a própria solidão e evitar a conhecida depressão que o assola às vezes. Terá de ter coragem de se livrar das más companhias e fazer autocrítica. Terá de evitar a tentação populista e chavista. Terá de agüentar as pressões contra o Palocci, para evitar o caos. Que dom Tomás Balduíno reze por ele...
Entrevista:O Estado inteligente
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