Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 25, 2005

Diogo Mainardi:Dois conselhos ao leitor

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"Ouça atentamente o que tenho a dizer:
frutifique e multiplique-se. Faça doze filhos.
Faça treze. No intervalo entre um filho e
outro, leia Ulisses. Seu tema é a paternidade:
um filho à procura do pai, um pai à procura do
filho. Dois conselhos num artigo só: aproveite"

Filho é muito bom. Acabo de ter o segundo. Pena que comecei tão tarde. Fui tolo. Me arrependo. Eu poderia ter tido doze ou treze. Agora não dá mais tempo. Estou velho.

Quem teve doze filhos foi Jacó. Ele começou bem mais tarde do que eu. O Velho Testamento diz que ele foi pai pela primeira vez aos 84 anos de idade. A grande vantagem de Jacó em relação a mim é que ele morreu com 147 anos. Acho que vou morrer mais cedo. Além disso, Jacó podia contar com quatro mulheres: duas primas e duas escravas. Deus importuna um monte de gente no Velho Testamento. Mas faz um favor a Jacó, ordenando-lhe: "frutifica e multiplica-te". É o melhor conselho que alguém pode dar. Que eu me lembre, nunca dei um bom conselho a ninguém. Chegou a hora. Ouça atentamente o que eu tenho a dizer: frutifique e multiplique-se. Faça doze filhos. Faça treze.

O parto de meu filho aconteceu na quinta-feira, 16 de junho. É o dia em que se desenrola a ação de Ulisses, de James Joyce: quinta-feira, 16 de junho de 1904. A data ficou conhecida como Bloomsday, devido ao nome do protagonista do romance, Leopold Bloom. Ivan Lessa comentou: "Bloomsday é um bom dia, apesar dos irmãos Campos". Apesar de Antonio Houaiss, também. A velha tradução de Antonio Houaiss, de 1966, arruinou Ulisses. A nova tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro, lançada em 16 de junho, algumas horas depois do parto de meu filho, é infinitamente melhor. No intervalo entre um filho e outro, meu conselho é a leitura de Ulisses. Dois bons conselhos num artigo só: aproveite.

Ulisses tem como contraponto a Odisséia de Homero. Seu tema é a paternidade: um filho à procura do pai, um pai à procura do filho. O capítulo catorze de Ulisses, também chamado de "O gado no sol", gira em torno de um parto. Em cerca de quarenta páginas, Joyce acompanha toda a evolução da literatura inglesa, do antigo canto celta até o dialeto popularesco de seu tempo, macaqueando o estilo de autores como Chaucer, Milton, Defoe e Dickens. A idéia é traçar um paralelo entre os nove meses de gestação de uma criança e as nove etapas do desenvolvimento da língua. Em "O gado no sol", Leopold Bloom relembra seu único filho, Rudy, morto misteriosamente com apenas onze dias de vida, e relembra também seu pai, Rudolph, que se matou quando ele ainda era criança: "Não tens junto de ti nenhum filho de tuas entranhas. Não há ninguém agora que seja para Leopold o que Leopold foi para Rudolph".

Eu tenho filhos de minhas entranhas. Em Ulisses, Joyce parodiou o Velho Testamento: "Moisés gerou Noé e Noé gerou Eunuch e Eunuch gerou O'Halloran". Eu também gerei meus pequenos O'Halloran. Não há nada melhor. Não há nada mais fácil. Ter um filho não exige uma aptidão particular. Não exige empenho. Não exige preparação. Qualquer um pode ter um filho. A paternidade não é meritocrática. Pelo contrário: é uma daquelas áreas em que a mediocridade é plenamente recompensada. Ulisses serve para isso mesmo: para ajudar a aceitar nossa mediocridade.

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