no mínimo
22.06.2005 | Entre a agência dos correios, a padaria e o banco, na minha peregrinação diária de trabalhador doméstico passo em frente a uma banca de jornal, na esquina das ruas Padre João Manoel e Barão de Capanema, aqui em São Paulo. "Navegar é preciso" é o nome da banca, como a me lembrar de que, quaisquer que sejam as notícias, por mais graves ou desalentadoras, é preciso tocar o barco. Afinal, é preciso pagar as contas no final do mês.
Algumas semanas atrás, neste mesmo canto, falei do vento que tinha virado de repente, mas não podia imaginar o "tsunami" que estava a caminho. Dezenas de leitores me escreveram para comentar o artigo e pedir explicações sobre o que estava acontecendo. Respondi a eles com uma outra pergunta: se não estou nem entendendo, como posso explicar?
Para falar a verdade, tinha perdido até a vontade de escrever. Escrever o quê, se você não tem nada de novo a dizer e, mesmo que tenha, de nada vai adiantar para mudar as coisas? Dei uma parada até no livro de memórias que estou escrevendo. De uma hora para outra, remexendo no baú de papéis com anotações dos últimos 40 anos, parece que as coisas perderam meio o sentido - a memória embotada, o fio da meada rompido.
Na última sexta-feira à noite, em busca de respostas e de amigos, criei ânimo para ir à Casa de Portugal, no bairro da Liberdade. Já estava previsto, mas o ato em defesa do PT ganhou outra dimensão, pois calhou de acontecer no dia seguinte à saída de José Dirceu do governo. Era tanta gente com suas velhas camisetas e bandeiras vermelhas que o trânsito ficou congestionado e foi difícil conseguir entrar no auditório lotado por mais de duas mil pessoas.
Quase todo mundo ali se conhecia de outros carnavais e temporais, mas o som estava tão alto que mal dava para conversar. Um forte abraço, um soco na barriga, um tapa na cabeça – os gestos tomaram o lugar das palavras. Veio gente até do Acre, brinquei com o governador Jorge Viana e a senadora Marina Silva. Encontrei companheiros do Brasil todo, não só do partido, mas dos movimentos sociais que construíram o PT ao longo dos últimos 25 anos.
Não que faltasse disposição para a luta, para enfrentar o vento, mas o clima era bem diferente de tantos outros encontros com as mesmas pessoas em variados momentos da história recente. Zé Dirceu, como de costume, levantou a platéia com seu discurso inflamado, lembrando os tempos de líder estudantil nos anos 60 do século passado, convocando todos à guerra em defesa da história do PT - e da história de cada um dos presentes.
Notei, porém, que estávamos todos mais velhos e faltavam jovens entre os que gritavam palavras de ordem em defesa do partido e do governo Lula. A enxurrada de denúncias de corrupção de todos os tipos e em todas as latitudes nas últimas semanas bateu fundo na alma daquelas pessoas que passaram a vida acreditando num sonho e agora viam ameaçado seu projeto de futuro.
Ao sair de lá, confesso que me bateu uma sensação de vazio, apesar do conforto em reencontrar velhos amigos. Algo, um pedaço de mim e do tempo vivido, tinha ficado pelo caminho. No dia seguinte pela manhã, passei de novo em frente à banca e lá estava o verso célebre do poeta maior a lembrar que, apesar de tudo, "navegar é preciso".
E é mesmo. Quando você menos espera, algo de bom acontece, dá de novo sentido e força ao verso. Em meio à leitura do jornal no café da esquina, um senhor de cabelos brancos, muito elegante, de gravata em pleno sábado, pede licença para me interromper e me dá um abraço. Não o conheço. Me dá um cartão - fico sabendo que é o artista plástico Roberto Bonino - acompanhado apenas de algumas palavras amáveis. Nada pede, nem pergunta.
***
Em casa, aguarda-me uma penca de e-mails para responder no final de semana. Reconfortado pelo gesto e pelas palavras daquele senhor no café, vou lendo um a um até encontrar o do leitor Francisco Marcos Dias: "Nessa última sexta, te vi no ato do PT. Lá estava você com sua camiseta tal qual os antigos militantes do PT (...) Te vi, ora conversando com um, ora com outro e, por um instante, me confortei, pois se você ainda sobe em palanque é porque ainda há vida. Sou um 'viúvo' da Marta. Trabalhei em seu governo sem um dia de férias, pois acreditei (e acredito) que tínhamos uma missão: tornar esta cidade melhor para todos, com oportunidades iguais. Perdemos, perdi o emprego, estou desempregado, mas ainda assim acredito, como acredito que o Lula poderá dar o rumo que tanto sonhamos para este país".
Respondo-lhe que "as coisas andam difíceis, mas não podemos desanimar", e ele repica: "O que diz seu coração? Sou negro, tenho 50 anos e não sei o que é desanimar (a vida assim me fez), mas não tem como não se entristecer". Grande Francisco.
Entrevista:O Estado inteligente
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