Não há dúvida de que o governo brasileiro tem o direito de quebrar a patente do medicamento Kaletra, uma das drogas usadas no tratamento da Aids, fabricada pelo laboratório norte-americano Abbot -conforme anunciou que o faria na sexta-feira. A maioria dos sistemas jurídicos do mundo preconiza que a vida deve prevalecer sobre a propriedade. Assim, em situações de grave risco à saúde da população, os direitos comerciais da Abbot subordinam-se ao interesse público.
O licenciamento compulsório, que permite ao Brasil produzir o fármaco à revelia do laboratório, ainda que com o pagamento de royalties, é um mecanismo previsto pela legislação brasileira (lei nº 9.279/96), está de acordo com as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) e tem o apoio da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Praticamente todas as nações desenvolvidas contam com dispositivos semelhantes em sua legislação, a começar dos EUA. Washington já se utilizou da figura do licenciamento compulsório na agricultura. No campo da saúde, recentemente ameaçou fazer o mesmo contra o laboratório alemão Bayer, fabricante do antibiótico Cipro, droga de referência em intoxicações por antraz. Logo depois do 11 de Setembro, os EUA viveram uma onda de pânico devido às remessas pelo correio de cartas contaminadas com antraz.
O fato de a quebra da patente ser justa e legal não significa que ela deva ser perseguida a qualquer preço. Até seria positivo para o mundo que o Brasil estabelecesse o precedente do licenciamento compulsório de uma droga anti-Aids no âmbito de um programa de distribuição universal de medicamentos, mas pensando exclusivamente nos interesses do país, o mais conveniente seria que a Abbot cedesse e aceitasse o preço que o governo está disposto a pagar.
Para começar, entre a quebra da patente e o início da produção da droga por um laboratório oficial existe um intervalo de pelo menos um ano. Além disso, por mais razão que o país tenha, a medida traria ao Brasil o ônus -perfeitamente administrável, mas ainda assim um ônus- de ser visto externamente como uma nação que não respeita os direitos de propriedade industrial. As autoridades brasileiras parecem saber disso. Provavelmente não foi por outra razão que deram à Abbot dez dias para aceitar o preço do governo antes de ter a patente quebrada.
Entrevista:O Estado inteligente
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