folha de s paulo
Para muita gente boa, é o fim mesmo. Oposicionistas "responsáveis" querem preservar o governo Lula do excesso de desgaste, prevenindo-lhe uma ruptura antes da eleição de 2006. Outros jogam o destino do governo nos braços do PMDB, embora chamando o amplexo do parceiro inconstante como "abraço de urso".
Mas, por causa disso mesmo, estou otimista. O cálculo do risco de o país desandar é bem distinto, quando se trata da gangorra entre economia e política no Brasil. É um pouco como nossas seleções de futebol costumam reagir ao tomar o primeiro gol numa partida decisiva: isso acende uma reação nos jogadores, como se desculpados estivessem da carga emocional exagerada e da exigência de perfeição posta sob seus ombros. Humanizados e piorados, nivelados pelo gol do adversário, os craques crescem em campo e conseguem virar o jogo. Para toda regra há exceção: tem o abúlico time de Parreira como contra-exemplo.
Mas o governo Lula ainda tem time para correr o resto do jogo. Não me refiro a nomes, mas a novas idéias e ao momento político. A crise é grande o suficiente para embalar no governante reação construtiva. Lula sabe, ou ao menos desconfia, que seu governo, com marca própria, ainda nem começou.
Nestes dois anos, muito contrariando suas bases petistas, o Lula da economia privilegiou o rentismo (como é chamada a renda dos altos juros pagos aos aplicadores financeiros) à custa da produção e do investimento. Lula adotou o modelo financista do governo anterior e agravou-o, sob o aplauso suspeito do mercado financeiro e parte da mídia, que costuma confundir a política neoconservadora como uma fórmula ortodoxa e sem defeitos. Os juros altos vêm derrubando a economia produtiva. Aliás, desde muito antes da atual crise política.
A reversão do ritmo do investimento para o território negativo já era um fato anterior a qualquer crise dos Correios ou de "mensalão". A estagnação da agricultura e da atividade urbana doméstica, notadamente da construção civil, já aponta, há bastante tempo, uma barreira ao crescimento, incubada em decorrência da mistura inadequada das atuais políticas monetária, fiscal e cambial. Prova disso é a recente edição da "MP do Bem", um pequeno conjunto de providências para induzir o empresário a recomprar a idéia de investir, cujo custo permanece por demais elevado no nosso país. A MP já estava pronta no espocar da crise política. Apenas acelerou-se o seu anúncio.
Por enquanto, o governo parece estar correndo atrás do prejuízo. Mas não deveria agir por culpa, e sim por inteligência. Lula ainda tem capital político suficiente para anunciar uma efetiva "Agenda de Transformação". Deveria tê-lo feito desde o primeiro dia; mas preferiu seguir um caminho de anúncios pontuais, como o Fome Zero, o Primeiro Emprego e o próprio "Espetáculo do Crescimento".
Cumpre agora mostrar que existe, ou passou a existir, um plano de ação, uma agenda articulada, contendo metas e meios, e confrontar sua base de apoio, dentro e fora do próprio PT, com tal conjunto de providências que, sendo "palatável aos mercados", tire a economia da rota de desaceleração e estancamento, aperfeiçoe o regime monetário do real (um padrão, de fato, de estabilidade) e comprometa o Congresso com um Orçamento verdadeiramente equilibrado, mediante a fixação de uma meta para o déficit fiscal nominal, há longo tempo defendida nesta coluna.
Estaria o PMDB simpático ou refratário a uma "Agenda de Transformação"? Diante do seu anúncio pelo presidente -de modo incisivo, verossímil, corajoso- , muito arriscado seria para os partidos da base saltar ao mar. O que há de novo nessa proposição? Seria o resgate da ética na economia, tanto quanto o eleitor espera que se resgate um pouco da ética nas práticas políticas. Ética na economia não é apenas cortar gastos supérfluos, mas adotar um compromisso com a renda e o emprego, com os que trabalham e empreendem diariamente. O que existe de diferente entre o Brasil e a China, onde, nesta última, a elevação do nível de investimento em 2005 tem sido de 26% sobre o ano anterior, empurrando a máquina chinesa ao nível de superpotência? A diferença é que o chinês trabalha pelo pleno emprego dos seus fatores de produção, enquanto aqui adotamos as metas (implausíveis) de inflação como alvo e rumo exclusivo da nossa política econômica.
No longo prazo, o desvio na ética econômica pode ser mais deletério a Lula do que algum deslize, mesmo sério e relevante, de alguém próximo a si, no campo político.
O fim do mandato de Lula só ele mesmo pode decretar. A aferição do seu efetivo desempenho está apenas começando. O segundo tempo de um jogo é sempre o decisivo. Nele é que se conhecerão melhor os recursos táticos e físicos do time do governo.
Entrevista:O Estado inteligente
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