A cena abaixo foi tantas vezes
repetida que podemos esquecer
seu significado: eis aí a pedra de
Roseta da roubalheira
André Petry
NO CLÍMAX Marinho: em quatro segundos o dinheiro surge e desaparece no bolso. É o ápice do longa-metragem |
Há dois séculos, os soldados de Napoleão acharam um pedaço de granito cheio de inscrições obscuras que entraria para a história como a pedra de Roseta. É possível que eles tenham intuído a importância da descoberta, mas jamais imaginaram seu alcance histórico – a pedra teve, anos depois, a espetacular função de um dicionário para decifrar os hieróglifos egípcios. Quase três meses atrás, os soldados do empresário Arthur Washek sentaram-se diante de Maurício Marinho, dos Correios, e fizeram um vídeo de 114 minutos. Ao deixar a sala de Marinho, eles sabiam, até porque era essa a missão secreta, que o vídeo capturara um corrupto, mas nunca poderiam ter imaginado seu inédito alcance: eles produziram, com detalhismo de ourives, a pedra de Roseta da corrupção no Brasil.
Até então, provas das roubalheiras nacionais apareciam na forma de extratos bancários, correntistas fantasmas, contratos de gaveta, remessas ilegais e – no máximo – fotografias de dinheiro sobre a mesa. Agora, vêm em longa-metragem, com cenas e diálogos esclarecedores sobre o assalto ao Estado. No vídeo, Marinho fala das maneiras mais eficientes para roubar (a licitação dirigida não está com nada); da tabela de propina em vigor no dia (a prestação de serviço estava cotada em 10%); das formas de pagamento (reais, dólares, euros...); das dicas de segurança para não ser pego ("tudo sigiloso, se vazar vai para o saco", diz).
Com a naturalidade de quem comenta sobre a pescaria com os amigos, Marinho vai lentamente revelando seu bote. Fica claro que, para fisgar o interesse do cliente, atiçando-lhe o apetite, Marinho recorre ao gigantismo dos Correios. Fala das inúmeras compras da estatal (tênis, uniformes, remédios, bonés, papel, bobinas) e, sobretudo, enche a boca na hora de falar nos milhões de reais de cada transação. Nesse exercício, gesticulando o tempo todo, a estrela da corrupção traça um retrato em miniatura do pântano da máquina pública e mostra que:
• os cargos públicos foram desabusadamente loteados entre os aliados, que enchem as burras roubando em todo negócio possível. "Temos dezoito empresas", diz Marinho, referindo-se ao PTB;
• a roubalheira se organizava, com cada indicado zelando para atuar, sempre e somente, na própria área. "Bater cabeça, isso não pode", diz Marinho;
• seu PTB – e quem sabe os demais partidos também – passaria a roubar com mais método: cada um saberia onde e quanto roubar, pois o partido anteciparia o número de candidatos e sua necessidade de caixa.
A aula magna de corrupção começa com a câmera oculta filmando os saguões de acesso à sede dos Correios, em Brasília. Não há diálogos, só o som dos passos do portador da maleta que esconde a câmera. Registrando tudo, a câmera chega à portaria do prédio. Pára. O portador se identifica. Cruza com o segurança, dirige-se ao elevador. O espectador vê tudo à altura dos joelhos. Entra-se no elevador. Escuridão. "Primeiro andar", dirá a voz feminina mecanizada do elevador. A câmera, chacoalhando para cá e para lá, vai em direção à mesa de uma secretária e – o vídeo já terá aí um pouco mais de cinco minutos – finalmente aparece Maurício Marinho. Está em pé, de perfil. Conversa com duas mulheres. De repente, vira-se, enxerga o visitante e acena para a câmera. Aproxima-se, a câmera entra em sua sala. Começou o cinema-verdade.
Aos 82 minutos e 52 segundos, o longa-metragem chegará ao clímax: aparecerá em cena um maço de 3.000 reais e, em quatro segundos, sumirá dentro do bolso esquerdo do paletó do corrupto. As mãos de Marinho deslizam sobre tudo – sobre o papel, a mesa, ao manipular a caneta, arrumar os óculos, coçar a orelha, embolsar o dinheiro. Sempre deslizando, como se um gesto terminasse antes de ser concluído, já dando origem ao gesto seguinte. Depois de embolsar o dinheiro, nos 32 minutos restantes do vídeo, Marinho mudará: falará um pouco mais alto, sorrirá com mais freqüência e, exibindo a intimidade que só o segredo produz, fará confidências de ladroagens diversas, saboreando seu próprio suspense. É a pedra de Brasília.
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