Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Roberto Pompeu de Toledo

A irmã chamada Ana
e outros casos

As marchas de Carnaval intrigam,
surpreendem, assombram e iluminam
recônditos da alma brasileira

Um certo senhor que, apesar de crescido, diz insistentemente à mãe que quer mamar a certa altura muda abruptamente de assunto e conta que tem uma irmã, chamada Ana, que piscava muito. Piscava tanto que acabou sem a pestana. Esse caso espantoso é relatado, como se sabe, na marchinha Mamãe Eu Quero, de Jararaca e Vicente Paiva. Mais famosos são os trechos em que o homem quer mamar, quer chupeta (trata-se sem dúvida de um ás da fase oral), mas perturbador mesmo é o caso da pobre Ana. Ela era namoradeira, tanto que piscava muito. (Será que se pisca ainda, para arriscar um flerte, como em 1936, ano da marchinha?) Mas, por efeito de tanto movimentar as pálpebras – e devia movimentá-las com fúria, para provocar tal resultado –, acabou por perder os pêlos que as complementam, o que, convenhamos, compromete o encanto eventualmente presente no ato de piscar. Uma desgraça abateu-se em sua vida.

As marchinhas, suprema expressão do Carnaval entre as décadas de 1930 e 1960, intrigam, assombram, mexem com a imaginação, iluminam recônditos da alma brasileira. Sassaricando consagrou esse verbo, "sassaricar", mas, mais importante, declarou que sassaricando "todo mundo leva a vida no arame". No arame?! Adivinha-se que seja o mesmo que dizer "na corda bamba", mas nem por isso a expressão causa menos estranheza. Seria comum dizer que se levava a vida "no arame" no antediluviano 1951, ano de Getúlio e Harry Truman, da primeira Bienal de São Paulo, do lançamento da Última Hora, por Samuel Wainer, e de Sassaricando, por Luís Antônio, Zé Mário e Oldemar Magalhães?

Chiquita Bacana, aquela que se vestia só com uma casca de banana, criação de Braguinha e Alberto Ribeiro (1949), era "existencialista, com toda a razão". Quer dizer: pensava, como Kierkegaard, Heidegger e, claro, Jean-Paul Sartre, que a existência precede a essência. Logo, só fazia o que mandava o coração. Mas vislumbra-se um espírito trêfego nessa filha da Martinica. Mais consistente, e – caso raro, numa marchinha – de afirmação da mulher, é a Colombina de Pierrô Apaixonado, da respeitável dupla Noel Rosa­Heitor dos Prazeres (1935). A Colombina, quando lhe vieram encher a paciência, disse: "Pierrô cacete, vá tomar sorvete com o Arlequim". Quer dizer: despachou os dois.

A mulata é uma obsessão do período carnavalesco. Ela foi saudada, entre muitos outros, por Lamartine Babo e pelos irmãos Valença, em 1931, em versos com lugar de honra entre os campeões do racismo em língua portuguesa ("e como a cor não pega, mulata / mulata, quero o teu amor"), e por Braguinha e Antônio Almeida, em 1947. Estes, depois de afirmar que "branca é branca, preta é preta, mas a mulata é a tal", acrescentam que quando ela passa todo mundo grita: "Eu tô aí nessa marmita". Eis-nos outra vez diante dos mistérios da expressão. Que significaria "estar numa marmita"? Segundo o Dicionário Houaiss, em sentido informal, marmita pode ser "barriga, ventre" e também "meretriz que sustenta o rufião". Não, barriga não cabe, e meretriz não seria, muito menos quando arrimo de rufião, a mulata para a qual o narrador "bate palmas e pede bis". Uma possibilidade é supor que a mulata em questão carregasse uma marmita, em sentido próprio. O autor, carinhoso, gostaria de estar dentro dela só para privar de sua intimidade. Mas é apenas suposição. Sessenta anos é muito. Produz ruídos impenetráveis na linguagem. Não é simples, para um ouvido de 2007, captar uma voz de 1947.

A mulata é a mulata. Estranho seria se não figurasse no Carnaval. Intrigante de verdade é a presença nas marchinhas do mundo árabe e da religião muçulmana. Em Alah-lá-ô (Haroldo Lobo e Nássara, 1940), pessoas que, exauridas, atravessam o Deserto do Saara (bom nome para rimar com "cara") pedem água a "Alá, meu bom Alá". Em Cabeleira do Zezé (1963), um clássico da homofobia, começa-se por duvidar da masculinidade do Zezé, um moço de cabelo comprido, mas, a certa altura, faz-se um giro desconcertante e pergunta-se: "Será que ele é Maomé?". Por que Maomé, logo Maomé, se esconderia por trás do cabeludo? Ainda não existiam os xiitas, nem os aiatolás, nem a Al Qaeda, para sorte de quem compôs (João Roberto Kelly e Roberto Faissal) e de quem cantou a música.

De resto, bebia-se, ah, como se bebia, nas marchinhas. Nelas, como a mulata, a cachaça é a tal. Em Saca-Rolha (Zé da Zilda, Zilda do Zé, Waldir Machado), o personagem-narrador afirma que garrafa cheia não quer ver sobrar. Em Cachaça (Mirabeau Pinheiro, Lúcio de Castro e Héber Lobato), configura-se um caso gravíssimo. O narrador declara que pode lhe faltar tudo na vida: "arroz, feijão e pão". Pode lhe faltar até o amor, e disso "até acha graça", mas não pode lhe faltar "a danada da cachaça". Tanto Saca-Rolha quanto Cachaça são de 1953. É o ano da criação da Petrobras, do filme O Cangaceiro, de Lima Barreto, premiado em Cannes, do livro Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, e do apogeu dos borrachos.

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