O Globo |
15/2/2007 |
"Uma história acontecida no Rio de Janeiro em 1963 pode servir de inspiração para mudar o rumo dessa discussão sobre antecipação da maioridade penal. O jornalista Odylo Costa, filho perdeu seu filho brutalmente assassinado nas ladeiras de Santa Teresa por um criminoso menor de idade. Foi o primeiro assassinato de um jovem da classe média por um menor delinqüente, e chocou a cidade. Pois Odylo, católico fervoroso, não apenas perdoou publicamente o assassino de seu filho, como começou uma cruzada nacional para a criação de um organismo que substituísse o Serviço de Assistência ao Menor, o famigerado SAM, considerado na época uma fábrica de bandidos. Nasceu assim a Fundação Nacional de Assistência ao Menor, sem verbas e já depois do golpe de 64. Transformou-se com o tempo na famigerada Funabem, outra escola do crime, até que a Constituição de 88 passou aos estados a tarefa de lidar com os menores infratores. E, dois anos depois, nascia o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A tentativa de Odylo não deu certo, mas sua origem foi generosa. Quem sabe não encontramos hoje caminhos diferentes da simples repressão para atacarmos essa tragédia nacional, e com melhores resultados?" "Seis anos depois, em novembro de 1969, quando Pelé fez o milésimo gol no Maracanã e pediu para que cuidássemos de nossas criancinhas, foi tachado de demagogo. Esperava-se uma declaração mais politizada do maior ídolo nacional contra a ditadura militar. E, no entanto, mesmo sem querer, Pelé estava tendo uma atitude política das mais relevantes. Como antevia jogadas, Pelé antevia também os problemas que estávamos criando. Só nós, a maioria da sociedade, não sabíamos, ou fingíamos não saber, que nossos problemas estavam, já naquela época, zanzando pelas ruas das cidades brasileiras, sem apoio, sem futuro, sem perspectivas de vida. Quantas gerações perdemos de lá para cá, simplesmente por falta de educação, até que o tráfico fincasse suas raízes por aqui, se alimentando dessa força de trabalho que deixamos fenecer nas ruas, nas favelas, abandonadas à própria sorte, numa sociedade onde vencer na vida com o suor do próprio rosto é cada vez menos possível para a maioria?" Estes dois textos, com pequenas alterações para ligá-los, foram publicados aqui na coluna em momentos distintos, nos últimos anos, diante de comoções como a que agora nos domina devido ao brutal assassinato do menino João Hélio. Antes dessa tragédia que se abateu sobre o Rio de Janeiro, uma outra comoção social levara à discussão da antecipação da maioridade penal. Ocorreu em 2003, em Embu-Guaçu, região metropolitana de São Paulo, quando um delinqüente de 16 anos chamado Champinha, já com uma morte nas costas, foi levado para a Febem depois de matar Liana Friedenbach, de 16 anos, com 16 facadas, desfigurando seu corpo após violentá-la durante quatro dias. Embora menor, ele liderava um bando, que ajudou no estupro e executou o namorado de Liana, Felipe Caffé, de 18 anos. No fim do ano passado, quando expirou o prazo de três anos que um menor pode ficar detido, o juiz do Departamento de Execuções da Infância e da Juventude decidiu, com base num laudo do IML, encaminhar Champinha para tratamento "especializado de saúde mental". Os médicos afirmam que ele "tem alta possibilidade de reincidir no crime e por isso não pode viver em liberdade". Essa discussão sobre a maioridade penal é recorrente. O Código Penal do Império estabelecia a inimputabilidade apenas para os menores de 14 anos, definição que prevaleceu no Código Penal da República, de 1890. Mais uma vez deve dar em nada, mesmo que o Congresso decida alterar a Constituição através de uma emenda. Já existe um parecer do Instituto dos Advogados Brasileiros, cujo relator foi Kátia Tavares, 1ª vice-presidente do IAB, que diz que a antecipação da maioridade penal não pode ser feita pelo Congresso, o Poder Constituinte Derivado, porque mexeria em cláusula pétrea da nossa Constituição, que só pode ser alterada através de uma Constituinte. Portanto, qualquer decisão do Congresso nesse sentido poderá ser argüida no Supremo Tribunal Federal, e possivelmente derrubada. São "cláusulas pétreas" de nossa Constituição de 1988 a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto universal e periódico; a separação de poderes e os direitos e garantias individuais. Segundo essa interpretação, a idade mínima de responsabilidade penal, definida no artigo 228 da Constituição, é na verdade um direito individual e não pode ser modificado ou abolido. O jurista Ives Gandra Martins defende essa tese, explicando que os direitos e garantias individuais não são apenas os que estão elencados no artigo 5º , mas, "como determina o parágrafo 2º do mesmo artigo, incluem outros que se espalham pela Constituição e outros que decorrem de implicitude inequívoca". O Código Penal brasileiro, de 1940, explica Kátia Tavares, "estabelece presunção absoluta de que o agente menor de 18 anos é mentalmente imaturo e, conseqüentemente, incapaz de culpabilidade". Tal presunção "obedece a critério puramente biológico, nele não interferindo o maior ou menor grau de discernimento." É evidente que os critérios usados em 1940 para definir a inimputabilidade, incluídos na Constituição de 1988, precisam ser redefinidos, diante das mudanças ocorridas no mundo nos últimos 67 anos. Um aparato legal foi montado para proteger nossas crianças e adolescentes. Só não montamos uma sociedade capaz de dar-lhes educação, saúde e perspectiva de futuro. E de proteger os cidadãos contra os "Champinha" soltos por aí. |
Entrevista:O Estado inteligente
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