Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 18, 2007

Hora de cortar o bolo da reeleição Gaudêncio Torquato


De repente, não mais que de repente, a reforma política ameaça sair de cena, após um surpreendente menoscabo de Tarso Genro: 'Não é essencial à governabilidade.' O ministro das Relações Institucionais, com alguma razão, enxerga numa base partidária com cerca de 330 parlamentares a condição necessária para Lula atravessar, sem colete salva-vidas, o mar borrascoso do segundo mandato. Trata-se de avaliação precipitada. Se há um fio que conecta os ciclos da política brasileira, ele tem a finura da instabilidade. Mas o pacote da reforma política poderá ser desembrulhado por iniciativa do próprio presidente da República, que resgata a sua histórica posição contrária ao estatuto da reeleição. E já que o deputado Arlindo Chinaglia abre a possibilidade de 'fatiar' a reforma política, está na bandeja o bolo da reeleição, que, se ontem fazia a festa de glutões, hoje exala o mofo de acepipes mal-acondicionados. Como este estatuto atende ao pré-requisito de 'consenso progressivo', condição apontada pelo novo presidente da Câmara para inseri-lo na pauta parlamentar, a reforma política ganharia força se começasse pelo corte da reeleição. Esta decisão não seria tão perigosa quanto propor regulamentar dispositivos constitucionais sugerindo regras para facilitar a realização de plebiscitos e referendos, que deixariam de ser iniciativas exclusivas do Congresso, conforme parece ser intenção do Poder Executivo. Da maneira como está exposta, a proposta esconde artimanhas.

O fim da reeleição se inspira num único propósito: todos os jogadores querem participar do campeonato de 2010. O presidente Lula sabe que o ambiente sociopolítico não se presta à implantação do sistema de reeleição permanente que o caudilho Hugo Chávez impôs na Venezuela. Acabando com a prática, ele poderia tentar percorrer uma curva, não muito longa, para conquistar o terceiro mandato, após ceder a um adversário - provavelmente um tucano - ou a um aliado o governo do País por um interstício. O PT embarca na canoa. Os tucanos, liderados por José Serra e Aécio Neves (com ambições conflitantes), endossam a posição, deixando apenas em aberto a duração do mandato, de quatro ou cinco anos. O PMDB e o PFL também a aceitariam, porquanto, com menores chances, concentrariam esforços para entrar no páreo, seja qual for a alternativa. Há, portanto, razoável consenso sobre o fim da reeleição. E, se há vontade para afastá-la do mapa político, o início de um novo ciclo se ajusta ao propósito. Ademais, o Congresso não suportaria ensaiar a melodia monocórdica em torno do PAC. Como contraponto, arrumaria a orquestra para tocar a polifonia do discurso político.

Clarificados os interesses dos atores, assentados no pragmatismo que une os quarteirões da política, vejamos o cerne da questão. A reeleição constitui um dos maiores ativos do famigerado custo Brasil. Sua eliminação contribuirá para oxigenar a administração pública, arejando a cena com rotatividade maior no poder e obrigando partidos e candidatos a retornarem com intensidade ao encontro do eleitor. Um candidato à reeleição conta com handicap formidável: máquina administrativa, visibilidade, recursos e apoios múltiplos, domínio das estruturas partidárias e controle das redes sociais do Estado. Quanto menor a instância político-administrativa, maior o poder de fogo de candidatos à reeleição, ou seja, o Produto Nacional Bruto da Corrupção começa a engordar pelo cofre da prefeitada. Mais de 70% dos prefeitos são candidatos à reeleição.

Mas há uma explicação de fundo histórico por trás da idéia nefasta da reeleição. Trata-se da concepção e da origem dos direitos em nosso país. Como ensina José Murilo de Carvalho, entre nós a cultura do Estado prevalece sobre a cultura da sociedade. Os direitos políticos apareceram antes dos direitos sociais, o que gerou uma sobrevalorização do Estado. O Poder Executivo, operando as ações públicas, eleva-se no conceito das pessoas por simbolizar o distribuidor de 'benesses'. Direitos são vistos como concessões, e não como prerrogativas da sociedade, criando uma 'estadania' que sufoca a cidadania. Um processo de tutela amortece o ânimo social, dificultando sua emancipação política. Não é à toa que o assistencialismo, como dádiva, corre nos desvãos das três esferas da administração pública. Para reforçar o poder de manipulação, os atores apropriam-se das conquistas das sociedades urbanas, entre elas, as linguagens das mídias, principalmente dos meios audiovisuais, e passam a exercer um controle social sobre as massas, atraídas mais pela estética das imagens do que pela força da razão.

Neste ponto, convém pinçar o exemplo dos Estados Unidos, país sempre lembrado por adotar o estatuto da reeleição. Lá, o presidente Roosevelt permaneceu por quase quatro períodos (1933-1945, veio a falecer ao correr do último) seguidos na Presidência. Quando foi escrita, a Constituição norte-americana não restringia mandatos consecutivos. Acontece que os norte-americanos se unem em tempos de crise. Depois da recessão de 1929, elegeram Roosevelt, dando-lhe, depois, mais três mandatos. Após a 2ª Guerra, restringiram a reeleição a apenas um segundo governo, na crença de que o excesso de poder dos governantes é prejudicial. E aqui surgem as diferenças. Nos Estados Unidos, o império da lei funciona. Direitos são respeitados. Os tribunais fazem permanente interpretação da legislação. Mais que isso, a força da sociedade é extraordinária, agrupando associações de todos os tipos, que fiscalizam, cobram e diminuem o poder de influência do governo sobre a vida das pessoas. A pujança social é um freio a qualquer iniciativa de totalitarismo.

Ao contrário, por aqui o Estado tem a força para expandir a sua sombra deletéria. E é nela que a reeleição se refugia, escondendo um corpo esculpido em mazelas.

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