Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, fevereiro 20, 2007

Arnaldo Jabor -O carnaval é nossa razão maluca

Todo ano meu artigo cai na terça-feira gorda. É claro que, todo ano, acabo falando do carnaval. Falar de quê? Das balas perdidas? Do Chinaglia, o secretário particular do Dirceu? Falar dos crimes hediondos, dos assuntos regressivos, de todas as vitórias do atraso que temos visto neste pobre país em marcha-à-ré? O carnaval ao menos nos dá a ilusão de uma esperança; parece até que somos um país que vai bem. Por isso, todo ano me repito, se bem que o carnaval não se repete. Há ínfimas mudanças anuais que o mercado, a crise política, os meios de comunicação vão provocando. Até o rato do Hugo Chávez já está financiando escola de samba, esse Mussolinizinho tropical tão amado por nossos intelectuais...

Muito bem, bodes à parte, vemos que, apesar de tudo, o carnaval guarda uma essência (sim, usarei a palavra renegada), uma 'essência' do que temos sido pelos anos afora.

O carnaval é nossa loucura grandiosa. Como pode o mundo achar o carnaval uma exótica suruba, este mundo irracional de bombas contra bombas ? É melhor entender o Brasil através do carnaval, do que ver o carnaval como um desvio da razão. O carnaval nos vê. O carnaval mostra que o Brasil tem outra forma de 'seriedade', mais alta que a gravidade do mundo anglo-saxão. O carnaval mostra a matéria de que somos feitos, por baixo dessa mímica de 'ocidente' que o Brasil tenta, há quatro séculos. Há uma certa 'orientalidade africana' em nossa vida. A África e os índios nos salvaram, assim como salvaram os USA. Que seria da América sem o jazz? Seria um pais branco-azedo, cheio de 'wasps' tristes. Nosso carnaval mostra que o inconsciente brasileiro está à flor da carne. Quanto mais civilizado o país, mais fundo o recalque. Talvez o carnaval seja uma doença salvadora, e não pode ser confundido com esculhambação ou anarquia. Desordeira é nossa política suja, desordem é o nojento egoísmo das classes dirigentes, ultimamente apavoradas com a violência que poderiam ter evitado, 30 anos atrás.

Pelo contrário, há um desejo de ordem no carnaval, como a busca de uma civilização 'não civilizada', de um retorno a uma animalidade perdida e, no entanto, pulsante.

Há no Brasil o desejo de uma difusa 'indianização' como futuro. A sacanagem das matas profundas é diferente das orgias calvinistas de Nova York, que inventaram o sexo torturado nas boates doentias e acabaram na aids. Todas as metáforas do carnaval são ligadas à idéia de abundância, de fecundidade, tudo busca um grande prazer para nos salvar, um dia, de um futuro desértico de racionalidade paranóica. Já imaginaram uma cascata de bundas na Suíça? Nosso 'fim da história' é sonhado como uma grande suruba delirante. O nosso carnaval quer transformar a cultura em natureza.

Quanto mais civilizado o país, mais fundo é o recalque. O carnaval é anti-Bush, anti-Iraque, antibode republicano. Resiste, mas o ataque do lucro e do mercado continua. O carnaval virou um tema para as empresas, os pacotes turísticos; o carnaval virou um produto.

Parece uma calamidade pública, uma euforia desesperada com os populares se esmagando nas ruas ou então um desfile chique de burgueses e burguesas se despindo para aparecer na TV, nas escolas de samba. O carnaval deixou de ser dos 'foliões', para ser um espetáculo para os outros; o carnaval deixou de ser vivido para ser olhado.

Por isso, tenho saudades da inocência perdida do passado. Lembro das marchinhas toscas que tocavam nos rádios por volta de dezembro, lembro das bobas fantasias - legionários, piratas, cowboys - influenciadas pelos filmes americanos, lembro da Casa Turuna na cidade, com máscaras de morcegos, pretos velhos, fantasmas de língua de fora, lembro das escolas de samba na Avenida Presidente Vargas: um bando de índios de bigode e penas de espanador, pintados de preto, rodeados pelas gordas baianas cobertas de balangandãs.

Dirão meus inimigos: esse idiota está louvando o atraso. Estou sim. Naquele atraso havia uma preciosa alma brasileira, um ritmo humano que se via nos bondes, nos botecos, nos caixotes dos bicheiros, nas favelas sem droga, sem crimes hediondos. Para descobrir um carnaval mais puro, há que olhar os detritos que sobraram dos anos 40 e 50, assim como olhamos velhas fachadas entre os prédios 'modernosos'. Quando passam as baterias das escolas, quando uns garotos sambam no pé, quando passam vagabundos vestidos de mulher, de 'nega maluca', quando vemos os 'clovis' de Santa Cruz, ainda vislumbramos traços de beleza autêntica. Dirão que sou um estraga-prazeres, mas tenho vontade de chorar quando lembro de um Brasil que estava seguindo seu rumo de toscos sambinhas e que de repente se viu jogado num progresso vertiginoso que não era o seu.

A explicação sociológica dos pobres querendo ser reis não esgota o assunto, diante do espetáculo da alegria desesperada e meio catastrófica das multidões que pulam na Bahia, no Recife. Há neles quase que o desejo de morrerem esmagados, num fervente formigueiro onde possam se sentir num grande 'Islã dançante' e pagão. Há ali uma espécie de comício contra as humilhações e dores do ano. Nos blocos dos anjos de cara suja, dos travestis escrotos, dos vagabundos, há uma autocaricatura que denuncia a mixaria da vida que vivem; eles se fantasiam de excluídos para justamente esconderem que são realmente. Eles esfregam em nossas caras que são as provas de um crime que não cometeram. Amanhã recomeça o carnaval do Mal.

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