Artigo - Eliana Cardoso |
O Estado de S. Paulo |
13/11/2006 |
Os deputados Raul Jungmann e Fernando Gabeira divulgaram nota em 1º/11 alertando que a liberdade de imprensa no Brasil está ameaçada. E a Associação Nacional de Jornais protestou contra a intimidação sofrida por repórteres da revista Veja durante depoimento prestado à Polícia Federal (PF) na investigação do dossiê dos aloprados. A mim também me arrepia qualquer tentativa de controle do pensamento e de sua expressão. Em setembro, quando uma ameaça terrorista forçou o cancelamento de uma ópera de Mozart em Berlim, como amante da música e da política, pensei em escrever sobre os abusos da censura e do terror. A política brasileira me oferece a oportunidade de falar sobre o tema e começo com o resumo da ópera. Há mais de 3 mil anos, Netuno, deus do mar, brincava com a vida dos homens. Depois da Guerra de Tróia, Idomeneo, rei de Creta, retornava a casa quando se defrontou com uma tremenda tempestade. Para salvá-lo e à sua frota Netuno exigiu o sacrifício do primeiro homem que Idomeneo encontrasse ao desembarcar. Quem era ele? Ninguém mais, ninguém menos que seu filho Idamante. O drama cabe com perfeição a uma ópera. Tanto que Mozart dele se valeu em 1781. E, neste ano de 2006, Idomeneo faz parte da temporada de Nova York. Também faria da de Berlim se uma ameaça de bombas não tivesse provocado seu cancelamento. O grupo islamita queria calar os cantores porque a montagem alemã adicionara à ópera de Mozart uma cena em que, juntamente com a frase "os deuses estão mortos", a diretora exibia as cabeças decepadas de Netuno, Buda, Jesus e Alá. Claro que sou contra os terroristas. Por outro lado, sou a favor da degola de qualquer deus que entre em competição com outro pelo título de maior, único e verdadeiro. Mas decepar a cabeça de Netuno me parece repreensível. Afinal, a intolerância religiosa era desconhecida na Antiguidade até que os homens inventaram o monoteísmo. Essa teoria não é minha. Até onde sei, quem apontou a crença num único deus como raiz da intolerância religiosa foi Freud. Não o Freud assessor do governo, cujo depoimento na polícia em nada contribuiu para nossa educação. Mas sim o dr. Sigmund, pai da psicanálise, cujo exame da religião em Moisés e o Monoteísmo continua precioso. O assassinato de Moisés é água rolada, mas o dr. Freud continua atual. Há pouca novidade no terrorismo religioso e político. Durante quase 2 mil anos, o tirano que proibia uma maneira de pensar diferente da sua era a igreja cristã. Não só censurava qualquer influência externa, como matava, perseguia, queimava e torturava infiéis em nome de deus. Somos herdeiros de quase 2 mil anos de uma tirania diante da qual Stalin e Hitler não passam de aprendizes, segundo a escritora inglesa Doris Lessing. No primeiro quartel do século 20, a igreja perdeu boa parte de sua influência sobre a sociedade. Desdentada, tornou-se amável, orientou-se para obras de caridade, dividiu-se em inúmeras seitas e, assim, deixou de ser o árbitro da conduta e do pensamento ocidental. Lembrar essa tirania passada não é mero exercício histórico, mas reconhecimento de processos que ainda atuam nas mãos de quem tenta controlar o pensamento da sociedade. Os políticos aprenderam com as religiões monoteístas a tentar silenciar as vozes críticas e discordantes. E poucos aprenderam com tanta competência como os socialistas. Stalin matou 20 milhões de pessoas. A Revolução Cultural chinesa, entre 20 e 60 milhões. Ninguém conseguiu contar todos os mortos. Mas é preciso contá-los na Etiópia e na Somália para impedir que lunáticos socialistas fascinem jovens alheios à História. A garantia constitucional de liberdade de expressão e de imprensa é a forma mais importante de conter os fanáticos do poder, que gostariam de mandar e desmandar sem peias. Com certeza, deixar-se amedrontar e fechar a ópera em Berlim é diferente de mandar fuzilar a oposição. Mas a sociedade que fecha os olhos à censura corre o risco de se tornar vítima dos crimes dos poderosos. No começo de novembro, a oposição e a imprensa vislumbraram nuvens espessas sobre a liberdade de expressão no Brasil. Tudo começou com o entendimento de que movimentos ligados ao governo acusavam a imprensa de partidarismo na campanha eleitoral. O presidente do PT, Marco Aurélio Garcia, aconselhou aos jornalistas uma auto-reflexão. Os jornalistas desconfiaram do conselho. O que o petista sugeria? Cautela? Acredita ele que o homem é fraco para suportar a surpresa magnífica da verdade? Pensa que a palavra é uma agulha que espeta o coração? E pondera o resultado do sangue derramado, mesmo se apenas em fantasia ou alucinação? De qualquer forma, não houve sangue, mas apenas empurrões quando militantes do PT agrediram repórteres na frente do Palácio da Alvorada na volta do presidente reeleito a Brasília. A situação complicou-se quando um delegado da PF pressionou repórteres da Veja. Levantou-se a suspeita de continuidade do movimento que tentara criar conselhos estatais para a imprensa no primeiro mandato (os projetos da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual e do Conselho Nacional de Jornalismo, que foram abandonados). Do lado positivo, sentença do juiz da 22ª Vara Criminal de São Paulo condenou o petista Emir Sader por crime de injúria, calúnia e difamação contra o senador Jorge Bornhausen, presidente nacional do PFL. No artigo O ódio de classe da burguesia brasileira, Sader chamara Bornhausen de "racista" e foi condenado, como a lei determina que seja punido quem acusa e não prova. Na semana passada, o assunto da liberdade da imprensa no Brasil saiu das manchetes. Afinal, as nuvens no horizonte não eram nimbos-estratos, mas apenas cumulus mediocris incapazes até mesmo de levantar tempestade num copo d"água. Pelo menos enquanto o presidente mantiver vivas as suas convicções democráticas. |
Entrevista:O Estado inteligente
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segunda-feira, novembro 13, 2006
Tempestade em copo d'água?
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