Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, novembro 28, 2006

Rendição - e o realismo


Artigo - Jarbas Passarinho
O Estado de S. Paulo
28/11/2006

Na Escola de Estado-Maior do Exército, entre as primeiras aulas de tática, os instrutores advertiam: não brigue com o tema, para que o aluno não insista em interpretar o contrário do que deveria fazer. Na realidade, o conselho tinha muito de filosófico, pois era uma lição de realismo, algo que certas pessoas traduziam por “não dar murro em ponta de faca”. Isso está a servir para nossas reflexões políticas nos dias que vivemos, conquanto aceitar essa máxima, sem resistência, equivale a um conformismo pusilânime. No Brasil, por exemplo, será a rejeição à definição de São Tomás de Aquino, na Súmula Teológica, de que a política tem por finalidade o bem comum. Já o padre Vieira, em sermão de 1641, pregando na Bahia ao vice-rei, Marquês de Montalvão, ironizava: “Perde-se o Brasil, Senhor, porque alguns Ministros de Sua Majestade não vêm cá buscar nosso bem, vêm buscar nossos bens.”

Assim foi o PT “da organização criminosa”, como a qualificou o íntegro procurador-geral da República. No início da revelação sucessiva dos escândalos que revoltavam a opinião pública, promovidos pela dupla Delúbio-Marcos Valério (da qual já não se ouve falar), um amigo meu, que votara no PT, disse-me, desencantado: “O Lula morreu politicamente.” Envenenado pela minha experiência de 32 anos na política, sorri-me e lhe respondi: “É cedo para o teu prenúncio, fruto do desapontamento.” Mais de um ano nos separava, então, das eleições. Um instituto de pesquisas eleitorais publicou que, caso disputasse a reeleição, o presidente não chegaria aos 30% do eleitorado cativo do PT. Ele soube calar-se por algum tempo, até a poeira baixar, um sacrifício penoso, aliás, para quem adora improvisar. Os petistas mais sinceramente irredutíveis enxugaram suas lágrimas entre envergonhados e revoltados. Uns poucos deixaram a legenda. Intelectual responsável, o ideal fez fremir Tarso Genro, que tomou do chão a luva e proclamou a refundação do PT. Esbarrou em José Dirceu, que, dominando “a organização”, lhe lembrou que “os reis não podem ir ao paraíso sem levar consigo os ladrões”. Lula reconquistou a popularidade e subiu ao paraíso, dizendo há dias que “quem errou já pagou seu erro”. Por que brigar agora com o tema?

O seu competidor, desprovido de empatia, essencial para encher as urnas de votos, abrigou-se na trincheira de ética, sem ter tido ainda a experiência suficiente para saber que a política não é o reino da ética nem da moral e que tudo conspira entre nós, brasileiros - mas não só entre nós -, para mascarar a verdadeira natureza da política. A distinção que Max Weber faz dos que vivem da política, diferentemente dos que vivem para a política, só serve para enriquecer as teses de doutorado em ciência política. Na prática, os políticos que ainda têm um pingo de vergonha confraternizam sem o menor pudor com os que têm feito da política a origem de seus bens vultosos, sem nunca terem sabido o que é trabalho, seja celetista, seja público. Fortunas são amealhadas rindo-se dos espécimes em extinção, que ganharam seu patrimônio com o suor de seu rosto ou graças ao seu cérebro privilegiado. De resto, quanto mais têm, mais querem ter, porque, para eles, o dinheiro é o seu deus.

Há dias, ainda consegui me surpreender, ao ver um deputado petista, chefe de um escritório de advocacia altamente rendoso, naturalmente especializado em Direito Tributário, que aumenta os seus bens cobrando de ladravazes iguais a ele o modo garantido de sonegar impostos. Além disso, é dono de empresas que lhe dão enormes saldos em aplicações a que não estão familiarizados senão os “sanguessugas” que atravessam sucessões no Ministério da Saúde na piedosa dedicação de equipar municípios com ambulâncias, sem o que doentes morrerão em seus municípios sem hospital. Devemos-lhes - e ao SUS - esse primoroso devotamento à criatura humana. Aparto-me da realidade brasileira, para não brigar com o tema.

Olho para o oeste, onde nasci brasileiro, depois que o Barão do Rio Branco levou o Brasil a comprar o Acre, segundo o grande cocaleiro Evo Morales, por um cavalo. O nosso Lula tem por ele exemplar afeto, quem sabe se também porque vê a troca como prova da submissão de um pequeno país andino, indefeso ante as garras imperialistas brasileiras, posto que, montado no cavalo baio e o quepe suspenso na mão estendida, Deodoro da Fonseca já tivesse premiado com o exílio seu velho amigo dom Pedro II. O Brasil, na figura da Petrobrás, tem-se esforçado para indenizar a troca do Acre pelo cavalo de Morales. Aceita a expropriação de suas refinarias, incompatíveis com o direito à propriedade boliviana reclamada por Morales, o que é um contra-senso com seu conceito socialista de propriedade. Sua vocação é clara. É um “democrata despótico”, venerador de Chávez e seu petróleo, e prestador do tributo da vassalagem gratuita ao exemplo dos exemplos, que ele chama de “democrata”, Fidel Castro. Como um filho, leva, em mãos, impensado presente artesanal de sua tribo aimará, adequado aos mais velhos que estão à espera da morte.

Identificado doutrinariamente com Evo, Chávez e Ortega, disse nosso presidente, ao lado do caudilho “bolivariano”, que foi o mesmo povo pobre que os elegeu, o que deve ter causado decepção aos bancos e abastados que votaram nele. Só se espera que não siga o modelo de Morales, que acaba, de autoritariamente, mudar de dois terços para maioria simples a aprovação das emendas constitucionais em curso. A resposta dos governadores dos Estados que representam 80% do PIB boliviano, e que lhe são todos contrários, foi apelar para uma greve de fome, como se isso sensibilizasse o ditador em embrião. Evo comemorará a morte do primeiro que não seguir a cartilha cautelosa do bravo ex-governador Garotinho, do Rio.

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