Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 25, 2006

O Banqueiro do Sertão, de Jorge Caldeira

Padre, matuto e magnata

A história de um personagem e de toda uma
época num monumental livro de Jorge Caldeira
sobre a São Paulo do século XVII


Roberto Pompeu de Toledo

Reproduzem-se nesta página exemplares da iconografia de época que ilustra O Banqueiro do Sertão

EXCLUSIVO ON-LINE
Trechos dos livros
Mulheres no Caminho da Prata
Padre Guilherme Pompeu de Almeida

Santana de Parnaíba é uma cidade histórica nos arredores de São Paulo, berço de bandeirantes, convenientemente situada à beira do Rio Tietê e, em seus anos heróicos, porta dos sertões por onde se enfiavam os paulistas em busca de índios para escravizar e metais para, como diziam, "remediar a pobreza". Em meio ao casario com janelinhas que dão direto para as calçadas estreitas ainda sobrevive uma ou outra das paredes de taipa dos primeiros tempos. No começo do século XVII, aurora da epopéia bandeirantista, a próxima cidade a oeste era Assunção do Paraguai. Entre as duas, o espaço imenso, ignoto e tentador. Uma das principais ruas de Santana de Parnaíba tem o nome do padre Guilherme Pompeu de Almeida (1656-1713). Este, ao contrário dos vizinhos, não saiu do lugar. Ficou parado. Mas, mesmo parado, descreveu uma legenda que ainda hoje é motivo de assombro.

Bem-vindo o leitor ao mundo dos jesuítas e da indiada, do ouro e da prata, das santas proclamações de intenções e das perversidades inomináveis, das ambições desencontradas das coroas da Espanha e de Portugal, dos broncos sertanistas analfabetos e de suas obedientes mulheres nativas ou mestiças. Esse mundo revive nas 1.040 páginas, distribuídas em dois volumes e guardadas numa caixa, de O Banqueiro do Sertão (Mameluco; R$ 170,00), o novo trabalho de Jorge Caldeira, o autor de Mauá – Empresário do Império. O Banqueiro do Sertão (com os subtítulos Mulheres no Caminho da Prata, para o primeiro volume, e Padre Guilherme Pompeu de Almeida, para o segundo) é um portento. Raras vezes, talvez nunca, o mundo da São Paulo do século XVII, e de quebra de todo o sul do que viria a ser o Brasil, mais o espaço em que se moviam os embriões das nações hoje distribuídas na metade meridional da América do Sul, foi tratado com tal abrangência e perspicácia. O fio condutor é a história do padre Pompeu, personagem que possuía em Araçariguama, nas matas de Santana de Parnaíba, uma propriedade murada como fortaleza medieval na qual edificou mansão como nenhuma outra, naquele tempo e lugar, e uma capela devotada a Nossa Senhora da Conceição.

O primeiro historiador paulista, Pedro Taques de Almeida Pais Leme, escreveu, no século XVIII, que, para abrigar os hóspedes, a casa do padre Pompeu tinha 100 camas, cada uma com uma "bacia de prata" embaixo. A mesa era farta. "Todos os dias se cozia o pão", prossegue o mesmo autor, "de sorte que para o seguinte já não servia o que tinha sobrado do antecedente." Nesse tempo os paulistas mais notáveis eram chamados de "potentados em arcos", quer dizer, senhores da guerra com numerosa tropa indígena sob seu comando. O padre Pompeu era um potentado de outra sorte. Um potentado-potentado. Um magnata. Espécime de ainda maior relevo quando se tem em conta a precariedade e o isolamento da sociedade paulista da época.

As 100 camas e as 100 bacias de prata para as necessidades noturnas dos hóspedes se devem provavelmente à extasiada fantasia dos pósteros. Mas que o padre foi um magnata, isso foi, e o livro de Caldeira o prova. A história de sua fortuna começa com o pai, também chamado Guilherme Pompeu de Almeida, portador do título de "capitão" pelo cargo de capitão-mor de Santana de Parnaíba. O primeiro Pompeu estabeleceu-se junto ao Morro da Voturuna, onde havia uma mina de ferro, e ali criou uma fundição. Nada como os anzóis, as facas e as machadinhas que saíam de sua forja para negociar com os índios no mato. Mas o pai também era fixo, como o filho. Seu negócio não era sair pelos sertões, mas fornecer às expedições que o faziam os materiais de que necessitavam, e financiá-las. A certa altura dessa atividade, começa a ser remunerado com o mais precioso dos pagamentos da época – a prata. Isso significava livrar-se do escambo que era a regra na tosca economia paulista e avançar no rumo da riqueza monetária.

A explicação de como o pai do padre teve acesso à prata é um dos pontos altos da pesquisa de Caldeira. O livro revela um tráfego intenso, para a época, e para o que se imagina da época, entre São Paulo e Assunção. No início do século XVII, Assunção já era um centro de relativa importância – "sede de governo, sede de bispado, produtora de vinho, açúcar, erva-mate e gado", escreve Caldeira. São Paulo era um vilarejo. Assunção crescia como abastecedora da jóia da coroa de possessões espanholas na América do Sul – Potosi, que em 1600 já tinha 160.000 moradores em torno de suas minas de prata. Os paulistas começam a ciscar na área na esperança de alguma sobra. Mas havia razões também para os paraguaios demandarem São Paulo. Dali desciam ao litoral atlântico e viajavam mais rapidamente à Europa. O trânsito entre os dois lados era facilitado pelo fato de, entre 1580 e 1640, as coroas de Portugal e Espanha terem se mantido unificadas.

São Paulo e o Paraguai tinham em comum o fato de serem duas comunidades de mistura entre europeus e índios, com predominância da cultura indígena, e meio que deixadas, as duas, aos próprios cuidados, sem grande interferência das metrópoles. Logo, porém, isso começa a mudar no lado paraguaio. Os jesuítas espanhóis, com forte respaldo de Madri, exercem crescente autoridade sobre a sociedade local. Principalmente, reservam-se o domínio dos aldeamentos indígenas. Sem contar com os escravos índios, a economia paraguaia definha. Ocorre então um fenômeno que, até o livro de Caldeira, era pouco conhecido – a transferência de vilas paraguaias inteiras para a região de São Paulo. Foi o caso de Vila Rica do Espírito Santo, localizada onde é hoje o Mato Grosso, em 1676. O episódio passou para a história como mais uma das freqüentes razias dos bandeirantes, que teriam destruído o povoado e seqüestrado os habitantes. Foi assim descrito pelas autoridades espanholas. O livro mostra que na verdade a transferência de Vila Rica e outras povoações foi pacífica e consentida. Mostra também quanto a má fama dos paulistas, descritos como mamelucos selvagens e hereges, se deveu à propaganda de autoridades e jesuítas espanhóis. Pintá-los piores do que já eram, ou atribuir-lhes culpas que não tinham, virou, ao longo do século, explicação fácil e conveniente para certas situações escusas. A transferência de populações explica a origem espanhola, via Paraguai, de muitas famílias paulistas.

Quem comandou a expedição a Vila Rica, conduzindo na volta 5.000 pessoas a Santana de Parnaíba, foi Francisco Pedroso Xavier. Ele era cunhado do primeiro Guilherme Pompeu. Logo depois, Pompeu levanta em sua propriedade de Voturuna uma capela, devotada à mesma Nossa Senhora da Conceição que viria a ser cultuada mais tarde também na capela do filho, em Araçariguama. A capela de Voturuna tinha um retábulo cujo preciosismo a distinguia da tosca arte paulista da época. Alguns toques indicam influência espanhola. Caldeira chega à conclusão de que, na mesma expedição, Pedroso Xavier trouxe uma equipe de artesãos formados na escola espanhola. Eles seriam os responsáveis pelo retábulo de Voturuna e de mais três ou quatro na região de São Paulo, inclusive os ainda em bom estado, e fáceis de visitar, em São Roque e Embu.*

Guilherme Pompeu de Almeida acumulou recursos suficientes para proporcionar o melhor ao filho. A escolha desse "melhor" recaiu em algo incomum para os paulistas de então – a educação. Educar-se, explica Caldeira, equivalia na época a preparar-se para ser padre. O jovem Guilherme fez os primeiros estudos no colégio dos jesuítas de São Paulo. Em seguida, classificou-se para o único curso superior no Brasil – o colégio de formação de jesuítas de Salvador. Ei-lo agora na capital da colônia, convivendo com a elite que circulava na Cidade Alta, inclusive o governador-geral. Ele consegue o mais alto grau, o de doutor em teologia, o que lhe dava direito a usar capelo com borlas brancas e desfilar a cavalo acompanhado de um pajem. Surpreendentemente, porém, deixa nesse momento a ordem, e torna-se modesto padre secular. Por quê?

Fabiano Accorsi
Jorge Caldeira


Por uma combinação de documento e deduções, Caldeira chega à conclusão de que o moço Guilherme teve de deixar a Companhia de Jesus porque incorrera no pecado da carne. Ele tinha um caso, provavelmente com uma índia, e daí resultara uma filha, que nunca ocultou, Inês de Lima. Como padre secular, ninguém o incomodaria por isso. Já entre os jesuítas vigorava marcação apertada contra similares derrapagens. De volta a Santana, ele se contentaria, pelo resto da vida, em rezar a missa para os matutos do lugar. Que diferença em relação às pompas do mundo que poderia ter conhecido, como doutor da mais poderosa ordem do tempo, talvez até com acolhida nas cortes européias, a exemplo de seu contemporâneo Antônio Vieira. Restava-lhe a opção de, como o pai, enriquecer.

O livro de Caldeira consegue ser, entre outras coisas, uma biografia. Não é pouca proeza, em se tratando de um período em que a documentação pessoal é quase inexistente. O padre Pompeu não sairá de Santana e arredores senão, documentadamente, uma vez, para uma romaria a Iguape, no Litoral Sul de São Paulo – por coincidência, além de centro de peregrinação, com sua miraculosa imagem do Bom Jesus, a porta de uma região aurífera que abrangia Paranaguá e os campos de Curitiba. Ou não seria coincidência? Por essa época – estamos já na década de 1690 –, o ouro começava a fazer parte da vida do padre. Seus borrões registram entradas vultosas do metal. Ele continua no mesmo ramo básico do pai – o de financiar as expedições dos sertanistas, quase sempre parentes. Só que agora essas expedições costumam embrenhar-se lá para os lados da Serra de Taubaté, no rumo de uma área que começa a ser chamada de Minas Gerais, onde enfim desponta a riqueza com que os exploradores destes Brasis sempre sonharam mas que até então os iludira. O padre mete-se em sofisticadas operações, em que importa artigos de Lisboa, ou escravos da África, para revenda na região das minas. Pagava os fornecedores com ouro e recebia dos clientes também em ouro. Caldeira mostra que, ao contrário do pai, ele era um investidor agressivo. O rendimento alcançava níveis estratosféricos. Numa operação em que mandou comprar gado em Curitiba e remeteu-o para as Minas, obteve lucro de 340% em um ano e meio.

Os muros que protegiam a propriedade de Araçariguama convinham para quem operava com ouro e, em algum lugar, precisava guardá-lo. Nos registros do padre, ano a ano, ele listava os "negros que têm espingarda em seu poder". Por "negros" se nomeavam tanto os africanos como os índios escravizados. Se lhes eram confiadas espingardas, é porque tinham a função de guardas. Os guardas e os muros garantiam não só o próprio ouro, mas o dos sócios e parentes que a ele confiavam suas reservas, o que completa a função de banqueiro do doutor em teologia do sertão. O esquema de segurança também vinha a calhar para certos encontros discretos e operações à margem do insaciável Fisco português. Caldeira chega a suspeitar que uma fundição clandestina operasse no local.

O enterro do padre, em fevereiro de 1713, revestiu-se de pompa jamais vista pelos paulistas. Vieram os chefes das principais famílias de São Paulo e os religiosos de todas as ordens. O caixão era revestido de veludo e coberto de prata. Uma primeira missa foi rezada na própria capela de Araçariguama. Daí o cortejo percorreu os 20 quilômetros até o centro de Santana, e, depois de outra missa, o corpo foi provisoriamente enterrado na matriz. Quando a carne se decompôs, novo cortejo transportou os ossos até São Paulo. Foram então abrigados sob o altar principal da igreja dos jesuítas, com inscrição em latim a identificá-los. O padre investira pesado na salvação de sua alma. Deixara encomendadas missas até em Lisboa, e pagara bem. Aos jesuítas, fez herdeiros de sua fortuna. O lugar nobre que com isso garantiu para os ossos não tivera por motivação a vulgar vaidade, mas um posto que, sendo o mais visível possível, fizesse as pessoas se lembrar dele e rezar em sua intenção. Considerando-se o longo prazo, no entanto, foi um investimento que, ao contrário dos que realizava em vida, teve resultados magros. A igreja dos jesuítas de São Paulo acabaria por desabar, e seus ossos foram parar sabe-se lá onde. Da fortificada propriedade em Araçariguama só restam vestígios. Para a memória de seus feitos, se é que isso lhe serve de consolo, ele ganha agora o livro de Jorge Caldeira.

* A capela de Voturuna também está preservada, mas se encontra
numa propriedade particular, e os donos não gostam de visitas.

TRECHO

"Na ermida em pleno sertão, ao lado de uma indústria de ferro, um padre secular – doutor em teologia, além de pai de uma filha com índia – começou a rezar suas missas para familiares, índios e caboclos num altar que reunia a influência de dois continentes e três civilizações. Longe de ser exceção num ermo sem movimento, todo este conjunto poderia ser visto como o símbolo de uma nova espécie de vida social, um modo no qual a novidade, a presença do outro e do distante era parte essencial da vida. Ao mesmo tempo, pensada em termos econômicos, a capela simbolizava o vasto espaço de abrangência dos negócios do capitão Guilherme Pompeu de Almeida, o homem que quase nunca deixava a vila de homens errantes para onde se mudara."

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