O Estado de S. Paulo |
22/11/2006 |
A passagem do governo Fernando Henrique para o de Luiz Inácio Lula da Silva foi um raro momento de maturidade e realismo político. A nova elite dirigente concordou em deixar quieto o passado, em troca da promessa da nova elite oposicionista de “não atrapalhar a administração e a governabilidade”, como dizia o então recém-eleito governador de Minas, Aécio Neves, já a estrela nascente do PSDB. É o que, reeleito e presidenciável, ele continua dizendo, desse modo ou de outro. Mas as coisas mudaram de figura. Em 2002, Lula e José Serra - este, livre dos maus conselhos do PFL, que o enjeitou - se guardaram de recorrer a baixarias. Agora, depenados na tentativa de tirar o petista do Planalto com a força do povo, os tucanos deram “uma exagerada”, na modesta versão do seu líder no Senado, o habitualmente excessivo Arthur Virgílio. E uma parte deles parece pronta a dar uma boiada para não sair do exagero. Não é segredo para ninguém que o capitão do time da pesada é o arquitucano Fernando Henrique, o que “não soube se reinventar como ex-presidente”, na implacável avaliação do mestre-brasilianista Kenneth Maxwell à Folha de S.Paulo. Aliás, ele concorda com a percepção dos observadores nativos segundo os quais as quizumbas entre o ex e o atual faz tempo que transbordaram da rivalidade política para o terreno movediço das vastas emoções e dos pensamentos imperfeitos. FHC, por sinal, sente em latim: animus bellandi é o que o move em relação ao aliado de priscas eras. No sábado, Lula disse a Virgílio - esperto, deu-lhe carona no avião presidencial na volta do velório do senador Ramez Tebet, em Três Lagoas - que pretendia convidar o tucano para uma conversa. A sua reação foi típica. Primeiro, lembrou que em quatro anos Lula só o convidou para o enterro do papa. Depois, reduziu o convite a uma “bobagem” - e passou um sabão em Virgílio por tê-lo divulgado. FHC, de fato, está em outra. O instituto que leva as suas iniciais informou na semana passada que irá “planejar ações de mobilização da sociedade civil para o exercício de uma oposição vigilante e responsável em relação ao governo Lula e ao PT”. É uma iniciativa curiosa, vinda de onde vem. O iFHC se define como entidade apartidária. Surgiu para cuidar do acervo do seu patrono e estimular o diálogo sobre “políticas públicas, construção de instituições, relações externas e governança mundial”. Mas isso é de menos. Demais é o tal do busílis: a quase impossibilidade de o PT e o PSDB, brigando ou se entendendo, aceitarem que os seus governos não são um o avesso do outro. Cada qual com os seus pecados, FHC e Lula compartilham a distinção de terem mudado o Brasil para melhor, indo basicamente pelo mesmo caminho. Foi uma jornada cheia de solavancos, mas sem interrupção, ao longo dos últimos 12 anos - “algo que nunca tinha acontecido na história brasileira”, ressaltou Maxwell, referindo-se à diminuição da distância entre ricos e pobres, pouca, mas constante nesse período. O governo tucano lançou as bases institucionais para o aggiornamento nacional e o controle da inflação, sem o que não se avança no social. O governo petista consolidou a estabilização e levou mais longe do que nunca as políticas sociais do antecessor. Não custa repetir o que aqui se escreveu entre o primeiro e o segundo turno: os tucanos apelaram na campanha porque não tinham a oferecer ao eleitorado nada de radicalmente diverso do que lhe oferecia o presidente. E não tinham porque as suas concepções básicas do que é bom para a governança e o País são mais próximas do que os dois lados abominam reconhecer. Por isso, quando se apedrejam, com a agravante de nenhum deles estar credenciado a atirar a primeira pedra, PT e PSDB ficam menores do que o Brasil que ergueram. É o que acontece, por exemplo, quando Lula, já reeleito, dá de desancar as elites e a mídia. Setores delas até que o merecem, mas não fora de hora, de lugar e de sentido, como na recente “recaída” confessa do presidente, ao participar de um comício pró-Chávez. É o que acontece também quando órgãos da imprensa atacam o governo por atacar, pavlovianamente. Outro dia, Lula aconselhou os seus a andar na linha, pois, “se batem na gente quando não erramos, imagem quando erramos”. Podia ter acrescentado que o PT no poder só começou a apanhar depois que começou a errar. Mas é também verdade que a mídia costuma investir contra Lula desdenhando do que dizia o legendário jornalista britânico C. P. Scott (1846-1932): “A opinião é livre, mas os fatos são sagrados.” Já o problema dos tucanos em crise de identidade - ser ou não ser beca e capelo do PFL - não consiste em deixar de fazer oposição. Isso nem está no ar, e é bom que não esteja: a última coisa que a democracia brasileira precisa é de um presidente nos píncaros da popularidade sem nenhuma força política a latir nos seus calcanhares. A questão talvez decisiva para o futuro dos tucanos é a da escolha do tipo de oposição com que enfrentar o reeleito. Ou insistem no oposicionismo à Virgílio (que disse que seria capaz de “dar uma surra até em Lula”), e à FHC (que disse que Lula “não tem condições morais de exercer a Presidência”), ou combinam a crítica, severa quando necessária, com a negociação, desarmada o quanto possível. Lula, que tem a perder não mais uma nova eleição, porém a entrada para a História pelo portão principal, está fazendo as expressões corporais que julga apropriadas ao preparo do segundo mandato. A ponto de levar o tucano brigão a quem deu carona a achar que ele “está mais maduro”. A pedra no caminho do resgate do que tenha sobrado do espírito de 2002, naturalmente, são os restos a pagar do escândalo do dossiê antitucano: sabe-se lá o que ainda pode surgir daí, se e quando se apurar até onde subiu a armação. Não sobrevindo o pior, há espaço para a distensão: que dele façam bom uso. |
Entrevista:O Estado inteligente
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O espírito de 2002- Luiz Weis
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